Ives Gandra Martins viu seu nome ser utilizado por bolsonaristas como base para o presidente invocar o artigo 142 da Constituição Federal e “dar um golpe de estado” utilizando as “Forças Armadas” como Poder Moderador. Para os tais o jurista altamente conceituado é a favor de tal interpretação, o que Gandra chamou de “fantástica distorção de meu pensamento“.
Segue abaixo parte do texto publicado no “Consultor Jurídico”:
Eu, pessoalmente, cheguei, a pedido de 66 constituintes, a escrever um pequeno livro intitulado “Roteiro para uma Constituição“, publicado pela Editora Forense.
Faço essa introdução para esclarecer às pessoas que citam minha interpretação do artigo 142 por “ouvir dizer” e sem “a ler” que a fazem com fantástica distorção de meu pensamento.
Escrevi no quinto volume dos referidos comentários, que foi veiculado em 1997, à página 167, que: “Por fim, cabe às Forças Armadas assegurarem a lei e a ordem sempre que, por iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, ou seja, por iniciativa dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, forem chamados a intervir.
Nesse caso, as Forças Armadas são convocadas para garantir a lei a ordem, e não para rompê-las, já que o risco de ruptura provém da ação de pessoas ou entidades preocupadas em desestabilizar o Estado“.
Em palestras posteriores, ao explicitar meu pensamento, inclusive nas aulas para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, esclareci que, se houvesse um conflito entre o Poder Executivo e qualquer dos outros poderes com claro ferimento da Lei Maior, sem outro remédio constitucional, o presidente não poderia comandar as Forças Armadas na solução da questão, se fosse o poder solicitante, e, pois, parte do problema.
Nessa hipótese, caberia aos comandantes das Três Armas a reposição da lei e da ordem.
Por fim, sempre expus em palestras que a reposição da lei e da ordem seria pontual, isto é, naquele ponto rompido, sem que as instituições democráticas fossem abaladas.
É interessante notar que o título que cuida dos três poderes é denominado de “Organização dos Poderes“, mas, na Carta da República, o título que cuida das Forças Armadas é denominado “Da defesa do Estado e das instituições democráticas“, vale dizer, se os poderes deixarem de ser harmônicos e independentes e colocarem em risco a democracia com invasões de competência uns dos outros, para sustar tais invasões um dos poderes atingidos pode solicitar a intervenção apenas para sustar a invasão, e para mais nada.
Por essa razão, o saudoso desembargador federal e constitucionalista, meu colega de turma, Aricê Amaral dos Santos, denominava o Título V de “regime constitucional das crises“, isto é, algo colocado na Lei Suprema para nunca ser usado, se o bom senso democrático prevalecesse entre os poderes.
O Poder Judiciário não pode legislar, por força do artigo 103, §2º. O Poder Legislativo deve zelar pela sua competência normativa perante o Judiciário e Executivo, conforme determina o artigo 49, inciso XI. Seria curioso se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal invadisse a competência normativa do Parlamento e, para zelar por ela, tivesse o Congresso Nacional de recorrer ao próprio poder invasor para sustar sua ação!!! As Forças Armadas só podem atuar, pontualmente, para repor a lei e a ordem por solicitação de qualquer dos três poderes (artigo 142, caput).
Estão os três dispositivos assim redigidos:
“Artigo 103 — ………..
§2º. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias“.
“Artigo 49 — É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
…………….
XI — zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;……….”.
“Artigo 142 — As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Espero que o diálogo e o bom senso dos membros dos três poderes nunca leve o país a necessitar dessa intervenção e que atuem como quis o constituinte ao colocar no artigo 2° da Constituição que:
“Artigo 2º — São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Essa é a minha opinião e, apesar do respeito que tenho a todos os que dela divergem, não tenho razão para modificá-la.