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A Belém encantada: história, memória e assombrações no imaginário paraense

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A Belém encantada: história, memória e assombrações no imaginário paraense
Paisagem do Ver-o-Peso em Belém / Foto: Taciano Cassimiro

O folclore amazônico é rico em lendas e figuras míticas, quase sempre tendo a mata como pano de fundo. Entretanto, quando a cidade surge e cresce nesse cenário tal qual como foi o caso de Belém, essas figuras tendem a se adaptar a nova realidade passando a residir não só no meio urbano, mas se fazendo presente no imaginário daquela população. De qualquer modo, eles vivem por meio da tradição oral, de histórias fantásticas que são repassadas por meio do “boca a boca” que trazem superstições e  lendas populares que remontam o tempo dos nossos avós.  A arte de contar histórias tem sido uma constante ao longo da história da humanidade. O papel do narrador frequentemente se entrelaçava com o de um guardião das tradições e memórias de uma determinada comunidade. Em meu trajeto, meu interesse recaiu especificamente nas histórias de aparições, ou como nós chamamos popularmente: visagens. Essa é uma temática que sempre ocupou um lugar especial na memória da região paraense, afinal de contas, quem nunca reuniu a família para contar histórias fantásticas sobre um avô, tio ou algum parente que tenha encontrado com um lobisomem, Matinta Pereira ou até mesmo uma alma penada?

A capital paraense está imersa em riqueza cultural, onde os sentidos são envolvidos por uma profusão de sabores, aromas e cores, cada um encontrado a cada esquina: desde as lendas e mitos compartilhados, até o ritmo contagiante do carimbó, passando pelas barracas que exalam o inconfundível cheiro do Pará no Ver-o-Peso, os pontos de venda de tacacá, as barracas vibrantes de açaí, sinalizadas por bandeirinhas vermelhas, e até mesmo as mangas que generosamente caem das mangueiras. Essas peculiaridades da culinária regional são verdadeiros presentes da natureza abundante, da influência da colonização portuguesa e das ricas heranças das culturas indígena e africana. Essa fusão única de culturas e raças também se reflete de maneira marcante no artesanato local e no folclore vibrante, simbolizado pelas inúmeras lendas e mitos que permeiam a cidade. As histórias fantásticas envolvendo o sobrenatural, almas penadas, aparições e fantasmas, são expressões típicas da criatividade do povo em imaginar e criar conhecimento. Histórias de visagens são universais, vários países europeus contam-se algumas dessas histórias e Belém do Pará não foge à regra.

Belém é um caldeirão de lendas, imaginários e memórias que se entrelaçam com a cidade, suas ruas, as águas da Amazônia e seus habitantes. O “Cortejo Visagento”, um evento anual no bairro do Guamá no Dia das Bruxas, desafia as influências do americanismo e do Halloween, resgatando a potencialidade regional do fantasmagórico e do visagismo. O termo “visagento” é fortemente inspirado na obra paraense “Visagens e Assombrações de Belém”, de Walcyr Monteiro (2016), que habilmente mescla as características singulares da capital. É notável destacar o quão incrível é para os habitantes de Belém, já que o narrador durante essas narrativas faz referências quase precisas a bairros, ruas, praças, cemitérios e outros locais onde supostamente ocorreram esses eventos de visagens e assombrações. Portanto, é realmente interessante, para não dizer fascinante, passear de ônibus nas proximidades do local onde tais eventos aconteceram, caminhar pela Rua da Doca, passar perto do Parque Cemitério da Soledade, ou visitar o bairro da Pedreira, entre outros, e recordar que há dezenas ou centenas de anos atrás, histórias sinistras que supostamente ocorreram ali. Vale ressaltar que, embora sejam consideradas “lendas urbanas,” grande parte disso está profundamente enraizada em nossas crenças e imaginação.

Quando caminhamos pela capital é comum vermos casarões históricos das mais diversas épocas, palácios do tempo em que o Pará ainda era conhecido como “Grão-Pará e Maranhão” e palacetes do tempo da Belle Époque Amazônica tais como o Palacete Bibi Costa situado na Av. Governador José Malcher, essa riqueza arquitetônica compõe o chamado cultura material. A cultura material diz respeito ao aspecto concreto, abrangendo os bens culturais que incluem objetos tangíveis, artefatos e construções presente ao longo da cidade das mangueiras. Por outro lado, a cultura imaterial está relacionada ao aspecto abstrato, envolvendo elementos como cantigas, lendas, mitos e narrativas de visagens e assombrações. Tais patrimônios que hoje servem de pontos turísticos e históricos da cidade supostamente guardam “histórias visagentas”, muitas dessas são contadas por funcionários e até mesmo visitantes que afirmam que tais aparições não pertenceriam a esse mundo.

A temática sobrenatural recentemente ganhou destaque mundial no streaming com a série Cidade Invisível da Netflix. A série de duas temporadas retratou os encantados do folclore amazônico, mesclando elementos de suspense, fantasia e figuras como a Cuca, o Saci Pererê e o Boto Cor-de-Rosa. Sendo a segunda temporada gravada em solo belenense e se não bastasse houveram alguns relatos visagentos por parte de membros da produção da série bem como da atriz Letícia Spiller – que deu vida a personagem Matinta Pereira. Em entrevista ao programa “OtaLab”, a atriz comentou sobre uma experiência no set e como a temática de visagens faz parte da cultura popular paraense.

“Filmamos na terra dos mitos, no Pará, na Amazônia”, compartilhou. “Em Belém, as pessoas vivenciam os mitos de forma muito real, presentes na cultura e em espírito. ‘Cidade Invisível’ reflete essas cidades invisíveis que existem debaixo dos rios e nas florestas, não visíveis, mas reais”, explicou Letícia. “No dia da gravação, ocorreram duas manifestações. Uma delas teve lugar no Mercado das Carnes, em Belém, um local um tanto ‘intenso’. Não havia ninguém lá, exceto a equipe de filmagem. De repente, uma luz acendeu e começou a balançar, sem vento”, ela relatou, surpreendida. “Todos ficaram apavorados, mas eu disse: isso veio para confirmar que o fenômeno é poderoso.”

Como evidenciado tanto na obra de Walcyr Monteiro quanto no “Cortejo Visagento”, Belém está intrinsecamente entrelaçada ao imaginário sobrenatural e místico. Por que não explorar esse mesmo imaginário para contar a história da capital paraense de uma maneira irresistivelmente cativante? Por que não unir patrimônio material e imaterial?  Esta pergunta foi o ponto de partida para uma série de textos chamados “História Visagenta” que visam apresentar Belém do Pará por meio de uma fusão envolvente entre história e misticismo, enraizados na memória popular. Ao longo dessa jornada, embarcaremos juntos na exploração de monumentos históricos que desempenharam papéis significativos na história paraense e hoje permeiam o cotidiano do povo.

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