As Marchas da Família com Deus pela Liberdade. 50 anos depois. Entrevista especial com Aline Pressot

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As Marchas da Família com Deus pela Liberdade. 50 anos depois. Entrevista especial com Aline Pressot

As Marchas contribuíram na construção de um discurso legitimador do golpe civil-militar, segundo o qual ele representaria um desejo da sociedade civil”, diz a historiadora.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreu no dia 19 de março de 1964, surgiu como uma reação ao discurso do ex-presidente João Goulart, na Central do Brasil na semana anterior, e “como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção ‘salvadora das instituições’, e, posteriormente ao 31 de março de 1964, passou por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar”, relembra Aline Pressot, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

A historiadora explica que, à época, alguns setores da sociedade acreditavam que o governo Jango “caminhava para o comunismo e a consequente destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade”, porque suas propostas de reformas de base tiveram adesão de vários partidos de esquerda.

Segundo ela, a associação do ex-presidente com o comunismo também “remonta a sua atuação no governo Vargas, no Ministério do Trabalho, sempre lembrada pelo anúncio do aumento de 100% do salário mínimo. Ele era visto por parte das elites como herdeiro político do getulismo. Essa herança política, somada à sua ligação com os sindicatos, faziam com que fosse considerado ‘esquerdista’. As viagens que realizou à China e à URSS acabaram por reforçar essa imagem”. E acrescenta: “Desse modo, as propostas reformistas passaram a ser identificadas com o comunismo e o governo, acusado de tramar um golpe de tendência esquerdista e transformar o Brasil numa ‘República Sindicalista’”.

Marcha perdeu força ainda em meados dos anos 1970, mas um grupo de Fortaleza pretende reeditá-la no próximo sábado, 22 de março. Pelas redes sociais, internautas combinam uma passeata pacífica pedindo a intervenção militar para evitar um golpe comunista no país. Aline Pressot diz que a “tentativa de uma análise mais aprofundada soaria arriscada”. Entretanto, assinala, “chama a atenção o fato de que um movimento, que mesmo durante os anos do regime militar passou por um processo de ‘esquecimento’, venha a ser reeditado 50 anos depois o golpe. Elas me parecem o sintoma de uma sociedade que ainda não se reconciliou com a memória do período da ditadura. E evidenciam que o processo de transição ainda espera por ser concluído”.

Aline Pressot é mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

                        Fonte: Historiativa Net

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade? De quem foi a iniciativa de realizá-la e em que contexto ela aconteceu?

Aline Pressot – As Marchas da Família com Deus pela Liberdade podem ser compreendidas como um movimento que se constituiu em uma série de manifestações, ocorridas entre os meses de março e junho de 1964. Enquanto fenômeno social, as Marchas inserem-se em um momento em que diversificados setores da população saíram às ruas em protesto ao governo de João Goulart, que, segundo acreditavam, caminhava para o comunismo e a consequente destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tais passeatas surgiram como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção “salvadora das instituições”, e, posteriormente ao 31 de março de 1964, passaram por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar.

A primeira Marcha ocorreu em São Paulo, no dia 19 de março de 1964, como uma resposta ao Comício da Central, realizado no dia 13, ocasião em que o então presidente João Goulart assinou alguns importantes decretos referentes às Reformas de Base.

As Marchas contaram, em sua organização, com o patrocínio e financiamento de empresários reunidos no grupo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Ipês, representantes da ala mais tradicional da Igreja Católica, segmentos do conservadorismo político, além de militares e da expressiva presença dos grupos femininos, como a Campanha da Mulher pela Democracia – Camde do Rio de Janeiro, e União Cívica Feminina – UCF de São Paulo.

Versões

Existem algumas versões a respeito da idealização da primeira Marcha da Família, mas todas elas convergem ao delegar à irmã Ana de Lurdes (Lucília Batista Pereira, neta de Rui Barbosa) a criação de um Movimento de Desagravo ao Rosário, que deu origem às Marchas.

O Deputado Cunha Bueno (PSD) teria se indignado com o discurso proferido por Goulart na Central do Brasil e, reunindo-se com a irmã, teria recebido a sugestão e partido naquela mesma noite para os preparativos da Marcha paulista. A data da manifestação foi também escolhida segundo suas diretrizes: 19 de março, dia de São José, padroeiro da família e da Igreja Universal (posteriormente, com o objetivo de “universalizar” o apelo ideológico e conferir um caráter ecumênico à manifestação, que a “Marcha em Desagravo ao Rosário” se transformara em “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”).

Tratava-se de uma “campanha de desestabilização” do governo João Goulart, em curso desde fins de 1961, empreendida por segmentos conservadores da sociedade que vinham, há alguns anos, denunciando a iminência do “perigo comunista” sobre o país. Esses grupos temiam as supostas tendências esquerdistas do presidente e perceberam que aquele seria o momento de intensificar seu trabalho junto à opinião pública.

IHU On-Line – A senhora enfatiza a necessidade de compreender quais foram os agentes influenciadores das Marchas da Família, chamando a atenção para a Concentração do Rosário em Família. O que foi esse movimento e em que medida ele influenciou a manifestação?

Aline Pressot – A Concentração do Rosário em Família ofereceu um modelo de organização e manifestação para os idealizadores das Marchas. Ela pode ser vista também como um exemplo da promissora aliança entre os grupos femininos e os setores conservadores da Igreja Católica. A Cruzada do Rosário foi arquitetada pelo padre irlandês Patrick Peyton e, lançada nos Estados Unidos em 1945, percorreu diversas cidades do mundo, como Londres, Sydney e Washington. As principais capitais do Brasil assistiram a essa manifestação, que, sob o slogan “A Família que Reza Unida Permanece Unida”, pretendia difundir o rosário como a grande arma na luta contra o comunismo, “a mais poderosa alavanca que eleva o mundo do deprimente materialismo em que se encontra”. Em 1962, no Rio de Janeiro, a Cruzada reuniu, segundo estimativas otimistas dos organizadores, cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas.

IHU On-Line – Que grupos sociais participaram dessa Marcha? Havia uma unidade no discurso dos manifestantes?  

Aline Pressot – Não é uma tarefa fácil analisar a composição social das Marchas. Se podemos afirmar que essas manifestações compunham um movimento, ou faziam parte de um projeto que, paulatinamente foi ganhando estrutura e extensão, não se pode deixar de atentar para as singularidades observadas nas Marchas ocorridas em diversas cidades do Brasil.

Durante a minha dissertação de mestrado, pesquisei cerca de 70 marchas, ocorridas entre os meses de março e junho de 1964 (minha pesquisa se concentrou nos arquivos da Camde e em jornais e revistas do acervo do Arquivo Nacional). Este número dá conta da complexidade do fenômeno estudado, que não deve ser reduzido à mera função propagandística e tampouco deve ser entendido apenas como produto da insatisfação das classes médias urbanas. Não se pretende com isso caracterizar as Marchas como manifestações de cunho popular, nem mesmo negar a existência de um eficiente trabalho de organização e promoção das passeatas, mas sim conduzir a um questionamento acerca da pluralidade de significados contidos em tais manifestações, que pode ser observada a partir da análise de elementos presentes nas culturas políticas das regiões em que as Marchas se realizaram.

Os discursos que legitimaram o golpe civil-militar de 1964 podem ser considerados o fio condutor dessas manifestações. É importante levar em conta, também, que a força e o alcance desses mesmos discursos está justamente no fato de que eles estavam ancorados a uma série de medos, expectativas, valores e crenças compartilhados pela sociedade da época.

IHU On-Line – Em que medida a Marcha foi uma reação ao Comício realizado por Jango na Central do Brasil? Por que, à época, havia uma associação de Jango com o comunismo? Havia uma confusão entre o que vinha a ser o comunismo e as propostas políticas de reformas de João Goulart?

Aline Pressot – Existe uma história curiosa a esse respeito. No próprio dia 13, enquanto se realizava o comício, e como parte da “campanha de desestabilização” do governo Goulart, muitas famílias cariocas responderam à convocação de acender uma vela na janela de suas residências como forma de protesto – o ato também era um evidente posicionamento contra uma suposta “ameaça comunista”, encarnada na figura do presidente. Também em São Paulo, mulheres se reuniram e rezaram o terço na Praça da Sé. Jango respondeu a esses ataques afirmando em seu discurso: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade de suas esperanças”.

As Marchas da Família surgiram, assim, como um Movimento de Desagravo ao Rosário, que teria sido insultado por João Goulart. As mulheres da Camde chegaram mesmo a distorcer suas palavras, afirmando que Jango teria dito que “os terços e a macumba da Zona Sul [do Rio] não teriam poder sobre ele”.

Comunismo

A associação da figura de João Goulart com o comunismo remonta a sua atuação no governo Vargas, no Ministério do Trabalho, sempre lembrada pelo anúncio do aumento de 100% do salário mínimo. Ele era visto por parte das elites como herdeiro político do getulismo. Essa herança política, somada à sua ligação com os sindicatos, faziam com que fosse considerado “esquerdista”. As viagens que realizou à China e à URSS acabaram por reforçar essa imagem.

Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, os ministros militares, com o apoio da UDN, chegaram a tentar a aprovação de uma emenda junto ao Congresso Nacional impedindo que Jango, então vice-presidente, fosse empossado. A emenda foi rejeitada, mas uma solução paliativa foi articulada pelas forças conservadoras. O Presidente teve sua posse garantida, mas sob o regime parlamentarista. Foi a forma que seus adversários encontraram de conter, em parte, seu poder, que consideravam “ameaçador”.

Durante os anos do governo João Goulart (1961-1964), a sociedade brasileira passou por um considerável crescimento e amadurecimento da mobilização popular em torno de projetos políticos. Grande parte dos movimentos sociais estreitou seus interesses em torno do projeto das reformas de base, projeto esse que compreendia mudanças na estrutura agrária, urbana, na educação, reformas institucionais como a extensão do direito de voto aos analfabetos, além de políticas de controle sobre o capital estrangeiro e a nacionalização de alguns setores da economia. Os partidos de orientação de esquerda – nacionalistas, trabalhistas e comunistas – além de organismos sindicais, como o CGT, entidades estudantis e ligas de trabalhadores rurais, empunharam com entusiasmo a bandeira das reformas, que nos anos finais do governo Jango ganhou contornos mais radicais.

Diante desse quadro, e procurando conter o avanço das forças populares, os grupos conservadores passaram a denunciar a iminência do “perigo comunista” e de uma suposta infiltração no governo, bem como nas Forças Armadas, nos partidos, sindicatos e organizações estudantis, que seria responsável pelo crescimento de tais mobilizações.

Desse modo, as propostas reformistas passaram a ser identificadas com o comunismo e o governo, acusado de tramar um golpe de tendência esquerdista e transformar o Brasil numa “República Sindicalista”.

IHU On-Line – Qual foi a influência do medo comunista na Marcha com Deus pela Família e a liberdade?

Aline Pressot – Os anos de 1961 a 1964 podem ser considerados como um dos períodos de maior radicalização anticomunista da história brasileira no século XX.

Eram tempos de guerra fria, e o “perigo comunista” parecia mais próximo desde a Revolução Cubana, em 1959, e a opção por um governo socialista naquele país, em 1961. Nesse mesmo ano, conforme já mencionado, a posse de João Goulart na Presidência foi recebida com grande alarmismo, por suas supostas tendências esquerdistas. Todo o repertório simbólico utilizado na campanha de desestabilização do governo João Goulart, como na realização das Marchas, esteve ancorado no imaginário anticomunista.

IHU On-Line – Quem eram os comunistas que ameaçavam o Brasil?

Aline Pressot – De acordo com o imaginário cristalizado no período, e conforme mencionado acima, havia uma infiltração comunista no governo, partidos, sindicatos, etc. Os “comunistas” seriam aqueles setores ligados aos movimentos sociais (que conheceram um crescimento significativo no período), especialmente os representantes das esquerdas que se uniram em torno do projeto das reformas.

IHU On-Line – Quais são as demais razões que levaram as pessoas a participar da Marcha?

Aline Pressot – Em meu trabalho de pesquisa, sempre tive a preocupação de enfatizar a importância de se analisar a relação entre as escolhas políticas dos indivíduos – nesse caso, a opção por aderir a um movimento que buscava a derrubada de um governo legalmente estabelecido e, posteriormente, a uma intervenção militar nas instituições democráticas – e o conjunto de crenças e valores que as orientaram.

Durante o que podemos chamar de “campanha anticomunista”, foram eleitos e manipulados uma série de bens simbólicos especialmente ligados à família e à religiosidade como também ao patriotismo, à moral e à ordem. Esses valores eram compartilhados por uma expressiva parcela da população. As pessoas eram convocadas a marchar para salvar o Brasil do comunismo, que ameaçava destruir os alicerces da sociedade “cristã e ocidental”: a religião, a pátria e a família.

IHU On-Line Qual foi a influência das marchas ao longo da ditadura militar?

Aline Pressot – Foi pouco significativa. Podemos dizer que, por alguns anos, a crença de que o golpe civil-militar representava um desejo da sociedade civil serviu como justificativa para o autoritarismo.

Alguns grupos femininos mencionados prosseguiram suas atividades após o golpe, visando principalmente reforçar a legitimidade do regime militar (houve ocasiões em que essas mulheres chegaram a pleitear uma repressão mais efetiva às manifestações contrárias à ditadura).

Ocorreram também comemorações no aniversário das Marchas. Mas, especialmente a partir de 1970, podemos dizer que parcela da sociedade optou por um “silenciamento” em relação a essas manifestações, e as Marchas foram desaparecendo da vida coletiva.

IHU On-Line – A marcha contribuiu para a deflagração do Golpe de 64?

Aline Pressot – O que podemos afirmar sobre as Marchas é que elas contribuíram na construção de um discurso legitimador do golpe civil-militar, segundo o qual ele representaria um desejo da sociedade civil.

IHU On-Line – Em sua dissertação de mestrado, a senhora analisou 70 passeatas em dez estados brasileiros entre os meses de março a junho de 1964. Em que consistiam essas manifestações e o que elas tinham em comum?

Aline Pressot – Especialmente em decorrência do sucesso da passeata do Rio de Janeiro, as Marchas adquiriram, em pouco tempo, abrangência nacional e o estatuto de um autêntico movimento em apoio ao golpe civil-militar, posto que boa parte delas ocorreu posteriormente ao 31 de março. Tais manifestações pretendiam demonstrar o caráter popular do golpe, uma vez que nesse momento uma grande parcela dos cidadãos ia às ruas comemorar a vitória, dar “ação de graças” pelo afastamento do comunismo das terras brasileiras.

IHU On-Line – Havia a ideia de que os militares assumissem o poder, restituíssem a ordem e depois entregassem o poder novamente aos civis? Em que consistia a ideia de “restituir a ordem” e por que a ditadura se estendeu mais tempo do que o planejado?

Aline Pressot – Ao menos, durante a “campanha anticomunista”, foi essa a ideia que prevaleceu. Não havia a reivindicação de um regime de exceção prolongado, e sim de uma “breve intervenção”, que viesse “arrumar a casa”, moralizar as instituições.

Restituir a ordem era dar fim à infiltração comunista, que seria responsável por todos os males da sociedade (crise econômica, corrupção, tensões políticas).

IHU On-Line – Como vê manifestações como a Marcha para a Família, que ocorre no cinquentenário da Marcha de 64, pedindo o retorno dos militares no país?

Aline Pressot – A tentativa de uma análise mais aprofundada soaria arriscada. Chama a atenção o fato de que um movimento, que mesmo durante os anos do regime militar passou por um processo de “esquecimento”, venha a ser reeditado 50 anos depois do golpe. Elas me parecem o sintoma de uma sociedade que ainda não se reconciliou com a memória do período da ditadura. E evidenciam que o processo de transição ainda espera por ser concluído.

(Por Patricia Fachin)

Fonte: Instituto Humanistas Unisinos

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