Dom Paulo Evaristo Arns, o ‘arcebispo da esperança’, lutou contra ditadura militar

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Dom Paulo Evaristo Arns, o ‘arcebispo da esperança’, lutou contra ditadura militar
Foto: Site da Câmara dos Deputados

Na tarde de 25 de outubro de 1975, o Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) informou que o jornalista Vladimir Herzog, diretor de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, havia se suicidado naquelas instalações do Exército. Eram anos de chumbo, com os militares no poder desde 1964. A censura à imprensa e a truculência contra os que se opunham ao regime atingiram em cheio Vlado, como o jornalista era conhecido, barbaramente torturado e morto. Os militares queriam sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como não entregou amigos, foi seviciado até a morte. Uma voz se levantou contra a versão do suicídio: dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo e cardeal da Igreja Católica desde 1973.

Muito antes da morte de Herzog, apenas uma das batalhas que travou contra o regime militar (1964-1985), dom Paulo já se preocupava com inúmeros cadáveres que vinham sendo jogados em valas na periferia de São Paulo, matança atribuída ao Esquadrão da Morte, mas que a Igreja Católica desconfiava tratarem-se do assassinato de jovens da luta contra o arbítrio. E fundou a Comissão de Justiça e Paz, da Diocese de São Paulo, para denunciar os crimes dos militares. Foi na luta contra a ditadura que dom Paulo começou a escrever sua história de um homem sem medo, o “arcebispo da esperança”, como ficou conhecido.

Entre 1979 e 1985, quando tudo o que os militares menos queriam era ver suas mazelas expostas pelo processo de redemocratização, dom Paulo foi ágil. Instituiu o projeto “Brasil: Nunca Mais”, com a ajuda do pastor evangélico Jaime Wright. O grupo conseguiu copiar um milhão de processos que haviam tramitado no Superior Tribunal Militar. Depois de tudo compilado, o “Brasil: Nunca Mais” denunciou toda a perseguição e a violência da ditadura. Os dados foram copiados, microfilmados e enviados para Genebra, onde o pastor Wright tinha relações com o Conselho Mundial de Igrejas. Dom Paulo temia que os documentos fossem apreendidos pelos militares brasileiros e destruídos. Os documentos só voltaram ao Brasil em 2012, já com o país na plenitude democrática, e estão à disposição do público para consulta. Em vez do medo, dom Paulo preferiu lutar para defender a memória de um período negro.

— Dom Paulo não avisou nem a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) que estava constituindo o “Brasil: Nunca Mais” — lembra o ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi, que assessorou dom Paulo no projeto. — Formou um grupo pequeno de auxiliares, para que não vazasse. Pediu que não falássemos nem em casa. Foram cinco anos de trabalho, de 1979 a 1985. Foi a primeira Comissão da Verdade do país. Até hoje ninguém contesta um único dado do levantamento do “Brasil: Nunca Mais”. Dom Paulo foi um marco na luta contra a ditadura.

Quando a agonia da tortura assolava os porões, sobretudo na década de 70, dom Paulo peregrinava de quartel em quartel. Usou sua influência para libertar dezenas de presos políticos. No meio de toda aquela incerteza, servia de referência para políticos brasileiros, que faziam romaria à Arquidiocese em busca de conselhos. Do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, na época líder das greves de metalúrgicos no ABC, ao então sociólogo Fernando Henrique, Ulysses Guimarães e Mário Covas, como lembra o jurista Dalmo Dallari, amigo de dom Paulo que foi o primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz, em 1972.

— Ele não fazia distinção de partido ou motivação política. Assim, circulava em todos os segmentos da sociedade. Como era essencialmente franciscano, atendia a todos com espírito de fraternidade e sempre com muito equilíbrio — recorda Dallari.

Outro amigo do religioso, o jurista Hélio Bicudo diz que o arcebispo recebia Lula com cordialidade, mas tinha relação próxima com Fernando Henrique.

Dom Paulo também apoiou a Teologia da Libertação. Não hesitou em desagradar ao Vaticano conservador ao se posicionar publicamente ao lado de um dos maiores expoentes daquele movimento católico de esquerda-socialista, Leonardo Boff. Por conta disso, especula-se que o arcebispo foi punido pela Igreja, que, em 1989, fragmentou a Arquidiocese de São Paulo em quatro novas dioceses: Osasco, São Miguel Paulista, Santo Amaro e Campo Limpo.

Em outro embate com a cúpula da Igreja, o religioso nascido em Forquilhinha (SC) no dia 14 de setembro de 1921, mostrou-se contrário ao celibato obrigatório em uma entrevista ao GLOBO, em 2002. Mais uma vez, enfrentou a fúria do Vaticano.

Formado em Teologia e Filosofia no Brasil, na década de 40, e em Letras na França, no início da de 50, dom Paulo escreveu 56 livros e recebeu 24 títulos honoris causa em universidades do mundo todo. Nos anos 60, atuou como padre em Petrópolis (RJ).

Ele se tornou bispo em 2 de maio de 1966, aos 44 anos, e foi nomeado arcebispo pelo Papa Paulo VI em 22 de outubro de 1970. Exerceu o cargo até 1998. Foi substituído pelo arcebispo dom Cláudio Hummes e virou arcebispo-emérito de SP. Era o mais antigo membro do Colégio Cardinalício. Participou de dois conclaves, em agosto e outubro de 1978, que escolheram os papas João Paulo I e João Paulo II.

Dom Paulo morreu em 14 de dezembro de 2016, aos 95 anos, de falência múltipla dos órgãos. Estava internado desde 28 de novembro no Hospital Santa Catarina, em São Paulo. Foi velado na Catedral da Sé, na capital paulista. O corpo foi enterrado na cripta da catedral. O presidente Michel Temer decretou luto oficial de três dias.

 

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