Mitologia nas paredes: uma viagem pelos estuques do Palacete Bolonha em Belém

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Mitologia nas paredes: uma viagem pelos estuques do Palacete Bolonha em Belém
Fachada do Palacete Bolonha em 2017. Fonte: Cybelle Miranda.

O Palacete Bolonha, situado na Av. Governador José Malcher, n. 295, atualmente abriga o Museu Casa Francisco Bolonha, integrado ao complexo “Memorial dos Povos”, pertencente a Prefeitura Municipal de Belém. O projeto do palacete foi concebido pelo engenheiro Francisco Bolonha no início do século XX, durante os anos de 1904 a 1909, destinado a servir como sua residência ao lado da esposa Alice Tem-Brick, uma pianista originária do Rio de Janeiro.

Bolonha empregou uma variedade de materiais para revestir os interiores do palacete, importados de outros países. No entanto, merece destaque especial a utilização de painéis em estuque (uma técnica de ornamentação fixa realizada em gesso muito utilizada em Portugal), os quais apresentam temas mitológicos. O mestre e doutorando em Arquitetura Wagner Ferreira (pesquisador do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural da UFPA) é especialista em simbologia e traduziu um pouco mais desta história contada através das paredes.

Cada ambiente da residência apresenta temáticas voltadas para o uso deste ambiente. A Sala de Música por exemplo, está localizada no pavimento térreo e é o primeiro contato do visitante ao adentrar o palacete. Ela se destaca pela rica ornamentação em estuque, nas cores branco e dourado, o qual criava um cenário ideal para Alice Tem-Brick brilhar com seu talento musical. Os estuques em alto relevo entrelaçam elementos evocativos a temas musicais, florais, mitológicos, célticos, angelicais e reais, conferindo à atmosfera um toque nobre e distintivo.

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Estuque da musa Érato localizado na Sala de Música do Palacete. Fonte: Cybelle Miranda.

Na envolvente Sala de Música, duas figuras femininas se destacam em um movimento de dança, despidas. Uma delas segura um pandeiro, enquanto a outra exibe uma lira, detalhes que, segundo Wagner Ferreira, as identificam como duas Musas – estas, por sua vez, são duas das nove filhas do deus Júpiter com Mnemosine, conhecidas por inspirar a música, poesia, dança, entre outras artes.

Érato, a musa da poesia lírica, amorosa ou erótica, é comumente representada segurando uma lira ou coroa de rosas, ocasionalmente acompanhada de um pandeiro. Já Terpsícore, a musa da dança, é retratada com uma lira ou viola. A representação nudista destas figuras intensifica a atmosfera erótica, ressaltando também o prazer de estar imerso naquele ambiente.

Na Sala de Almoço do palacete, Baco, o venerado deus do vinho, fertilidade, música e poesia, é representado em painéis. Apesar do acabamento brilhante destas obras, indicando a utilização de cerâmica em vez de estuque, os painéis ainda exibem de maneira marcante motivos mitológicos.

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Painel localizado na Sala de Almoço do Palacete. Fonte: Vithória Silva.

Os painéis retratam os bacanais romanos, festividades dedicadas ao deus Baco, que, a partir do Renascimento, passaram a ser associadas à embriaguez e ao regozijo. A celebração é enfatizada pelas expressões corporais vibrantes de todos os personagens presentes na cena.

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Quarto de Vestir da senhora Alice em 2017. Fonte: Vithória Silva.

Ao ascender ao pavimento mais íntimo da residência, deparamo-nos com o Quarto de Vestir da senhora Alice, um ambiente que se destaca pelo abundante uso de painéis em estuque. Todas as ornamentações sugerem que este é um local dedicado à beleza, harmonia e amor. A deusa Vênus é especialmente homenageada nos espaços dedicados à proprietária do Palacete, e isso se evidencia de maneira marcante em seu quarto.

Um painel merece especial destaque, uma vez que Vênus é proeminentemente retratada no centro da cena. Nessa representação, ela se inclina suavemente, acompanhada por uma águia e putti sob um arco-íris. O termo putti refere-se aos meninos alados, também conhecidos como “cupidos”, que frequentemente acompanham e adoram Vênus. No estuque, um putto segura um espelho para que Vênus possa contemplar sua própria imagem, enquanto no fim do arco-íris são dispostos arranjos florais, que indicam ser miosótis.

 A presença da águia, atributo de Zeus, sugere uma posição elevada, possivelmente refletindo a posição social destacada de Francisco Bolonha. No entanto, o aspecto mais proeminente da obra é a figura feminina, de Vênus, onde a feminilidade prevalece sobre a elevada posição da masculinidade. O espelho realça a beleza presente no ambiente, enquanto o arco-íris é um símbolo de boas notícias. O arco-íris, por sua vez, é associado à deusa Íris, e a presença do miosótis pode simbolizar a fidelidade ao amor verdadeiro. O significado central do estuque, portanto, parece ser a celebração e exaltação da beleza.

Marte, o deus da guerra, faz uma aparição marcante em uma moldura oval ou com formato de camafeu, presente no Quarto de Vestir de Alice. Na representação, o deus segura uma lança com a mão esquerda e um capacete com a mão direita, posicionando-se diante de um espelho próximo a um onfálo. Esta palavra grega, que significa umbigo, na mitologia pode representar o princípio masculino e é frequentemente simbolizada por uma pedra.

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Painel oval, representando Marte. Fonte: Vithória Silva.

A presença da lança e do capacete simboliza força, domínio e poder, enquanto o espelho reflete a beleza que permeia todo o ambiente. O fato de Marte não estar usando o capacete sugere que ele não está presente para a batalha. Segundo a mitologia, quando Marte encontrava Vênus, ele retirava sua armadura, descansando ao lado dela, e o mundo ficava em paz. Além disso, sua postura aparenta ser de paz, como se estivesse refletindo sobre a guerra.

A representação de Marte em uma posição pacífica pode indicar um ato de veneração a Vênus, considerando que ele está dentro do recinto dela. O fato de ser representado dentro de um painel que remete a um espelho pode confirmar essa ideia, sugerindo que ele está constantemente sob o olhar de Vênus.  

Wagner Ferreira acrescenta que essa relação de uma figura masculina em um campo, e localizada em um ambiente estritamente feminino, pode ser atribuído à uma questão de veneração que o próprio Bolonha tinha em relação à Alice.

Inúmeras outras histórias aguardam para serem contadas através dos painéis do palacete. No entanto, reservo este espaço para que o leitor explore pessoalmente o local e construa suas próprias narrativas a partir das expressivas obras em estuque.

Por último, destaca-se o fascínio na habilidade de Bolonha ao criar uma narrativa cuidadosamente elaborada por meio das imagens, tal qual as antigas pinturas Renascentistas, cheias de simbologias e prontas para serem desvendadas. Isso não apenas revela seu próprio repertório e conteúdo, mas também ressalta as habilidades físicas e intelectuais de seus funcionários, trazidos de outras localidades exclusivamente para a construção de sua residência e da Vila Bolonha.

Reverenciamos mais uma vez a riqueza cultural carinhosamente preservada na região Amazônica. Ainda há muito a descobrir e apreciar, a fim de que possamos, verdadeiramente, preservar nossos notáveis feitos.

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