De todas as graves palermices que se vão contando sobre o passado comum a portugueses e brasileiros, poucas serão de refutação mais simples, mas de efeito mais largo e destruidor, que a noção de que Portugal “roubou” ouro brasileiro, ou de que esbulhou esse seu antigo território hoje feito grande nação independente. Trata-se de falsidade grotesca e sem ponto por que se lhe pegue, mas amplamente divulgada pela indústria da lusofobia. Por um lado, e será esse o primeiro argumento a atirar as desinformados, Portugal não poderia “roubar” de si mesmo. O Brasil era terra portuguesa, foi-o de 1500 a 1822, e era-o então tanto, e com o mesmo estatuto, as mesmas prerrogativas e a mesma dignidade que qualquer outra parcela do todo nacional. Não foi território conquistado; foi país feito, erguido onde antes nada havia e jamais houvera para lá de grupos confusos, sem consciência de si, desconhecedores da linguagem escrita, desorganizados e antagónicos, cuja vida se fazia de constante migração, combate cruel e canibalismo. Ao arribar na costa brasileira, pois, Portugal apostou-se na sua descoberta para sul e norte, que se fez com as expedições de Gonçalo Coelho e Gaspar de Lemos; percebido o Brasil como parte de continente maior, e não como ilha, Portugal instalou nele feitorias comerciais para a exportação de madeiras e demais produtos exóticos. A mais apreciada das madeiras ali extraídas, o pau-brasil, viria a rebapatizar a nova terra. Seguiu-se, para espantar o interesse de competidores europeus, o assentamento militar, o povoamento e o aproveitamento em maior escala do território. Foi essa a estratégia a inspirar a expedição de Martim Afonso de Sousa, primeiro grande pioneiro brasileiro; foi ela, também, a conduzir à instituição de um Governador Geral do Estado de Brasil, cargo de que Tomé de Sousa foi o primeiro ocupante. Mem de Sá, que lhe seguiu no governo do Estado do Brasil, expulsou definitivamente os franceses e lançou, com o amparo de Lisboa e da Igreja, bom alicerce do que viria a ser a actual nação brasileira. O que se seguiu foi a construção do Brasil. Por toda a parte se forjaram ferros, partiu pedra, nasceram muralhas, recriaram as instituições trazidas da Europa, se semeou com câmaras e cartas de Foral o auto-governo pelos brasileiros – os portugueses do Brasil, avós dos brasileiros dos nossos dias -, se fizeram aldeamentos para os índios, casas para ensinar a ler e a contar e colégios onde as gentes deste Portugal americano descobriam a álgebra e a lógica, o latim, o grego, a música e o direito.
Tão grande empresa não se faz sem recursos, e a de Portugal no Brasil correspondeu a não menos que à edificação de uma nova Europa onde jamais se fizera uma estrada, se conhecera a civilização, se escrevera um livro ou erguera algo em pedra. Ora, imenso, arrasador, foi para Portugal o custo de fazer o Brasil quando já tão ocupado se achava com a protecção do seu império em África, na Ásia e na Europa. O leitor surpreender-se-á, pois, conhecendo o que representava para Portugal, em pleno pico da produção açucareira no Brasil, aquele Estado para os cofres da monarquia: 5 – cinco – por cento dos rendimentos gerais do Estado; isto é, o Brasil foi, até ao final do século XVII, financeiramente irrelevante para o império. Considerando, com efeito, o que nele investiu Lisboa, parece seguro que só em momento tardio se tornou a província de além-mar lucrativa para Portugal. Mas nem por isso se desinteressou o reino dela, nem por isso a abandonou ao jugo dos grandes capitalistas de Amesterdão quando estes a separaram da pátria-mãe e nem por isso a abandonou à sua sorte. Lisboa percebeu sempre a relevância estratégica do Brasil e a importância da obra civilizadora que lá se realizava. E, se é verdade que a arriscada aposta que fez nestes primeiros duzentos anos da existência brasileira se lhe faria lucrativa no século XVIII, é-o igualmente que Portugal não poderia ter antecipado a fabulosa riqueza mineral que acabaria por lá ser descoberta.
Porém, desvendado o que representou para o orçamento português o Brasil nos primeiros duzentos anos da sua existência, impõe-se um esclarecimento quanto ao tão falado, tão estudado, tão debatido ouro brasileiro. Se por volta de 1630 o Brasil era centro inquestionável da produção mundial de açúcar – estima-se que seria de produção brasileira 80% do produto chegado a Londres – e o Brasil representava nesse tempo 5% das receitas do Estado, é sabido que o Estado do Brasil ganhou rapidamente protagonismo económico ao longo do século XVIII. Foi esse protagonismo económico que acabou por ditar a sua autonomização política em 1815, com a elevação do Estado a Reino, e a independência em 1822. A rápida ascensão económica do Brasil ao longo das centúrias de XVII e XVIII é inseparável da exploração aurífera, e a verificação dessa evidente correlação bastaria, por si só, para desmentir a tese de esbulho. Embora muito regulamentada pela Coroa, a exploração do ouro e diamantes brasileiros era empreendimento essencialmente privado e cujos principais actores eram brasileiros – isto e, portugueses recém-chegados ou há muito residentes no Brasil. O Estado central, pois, limitava-se a cobrar impostos sobre o ouro extraído no Brasil por portugueses do Brasil. Essa taxa, o Quinto Real, correspondia a um quinto – ou 20% – do ouro extraído, pertencendo legalmente o restante a quem o encontrasse. A lei, contudo, foi sendo mais ignorada que escrupulosamente cumprida, estimando o historiador britânico Anthony Disney que nem um terço do ouro brasileiro acabou submetido ao Fisco. A fazer fé no cálculo minucioso, informado e geralmente aceite de Disney, teriam chegado aos cofres da Monarquia uns parcos 7% do ouro brasileiro. No final do século XVIII, Lisboa tentaria combater a evasão fiscal reduzindo o imposto cobrado, que era de apenas 10% à data da independência.
Entre 1720 e 1755, chegaram a Lisboa do Brasil, em média, 15 a 20 toneladas de ouro por ano. Dessas, três ou quatro eram propriedade do Rei, servindo para a defesa geral do Estado, sua manutenção e desenvolvimento. Grande parte desse ouro regressou ao Brasil em forma de novas cidades, de povoamento de terra então deserta, do apetrechamento de fortalezas, da edificação de estradas, hospitais, pontes e colégios. Outra parte, oitenta porcento, dessa fortuna arrancada à terra era privada, e chegou a Lisboa para pagar a importação de artigos metropolitanos pelo Brasil. A grande dinamização do comércio entre a Metrópole e o Estado do Brasil durante o século XVIII é prova da saúde da economia do império e, nele, da das suas parcelas europeia e americana. Onde está, portanto, o ouro brasileiro? Nas actuais fronteiras do Brasil, que se garantiram com as expedições e a sábia – mas cara – política externa que ajudou a custear; está nas fortalezas com que se defendeu o Brasil de predadores estrangeiros, em incontáveis edifícios de utilidade pública, em cidades, fábricas, fazendas e colégios. O ouro do Brasil serviu para fazer o país imenso que a monarquia portuguesa legou aos brasileiros.
TEXTO: Rafael Pinto Borges (Facebook Nova Portugalidade).