Líder da luta armada contra a ditadura foi assassinado dentro de um Fusca, há 55 anos
O Santos de Pelé enfrentaria o Corinthians de Rivelino a partir de 20h15 daquela terça-feira, 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Por volta das 20h, quando o fluxo de torcedores rumo ao Estádio do Pacaembu já havia diminuído, um homem de camisa listrada, carregando uma pasta preta, andava na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, a três quilômetros da arena. Torcedor do Vitória do Bahia, revolucionário considerado maior inimigo da ditadura militar, Carlos Marighella estava com a cabeça longe do jogo. Sob a iluminação precária da via, em noite de lua minguante, ele caminhava para um Fusca azul parado na esquina com a Rua Tatuí. Não sabia que seriam seus últimos passos.
Nascido em Salvador, filho de um imigrante italiano e de uma empresas doméstica cujos pais eram africanos que tinham sido escravizados no Brasil, Marighella entrou para a política em 1934, quando deixou o curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia e ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB). Em mais de três décadas de militância, o baiano chegou a ser eleito deputado federal nos anos 1940, mas teve o mandato cassado quando sua legenda foi banida. Enquanto ocupava diferentes cargos no partido, foi preso e torturado em ocasiões diferentes por agentes de duas ditaduras, a do Estado Novo e do regime militar. Há 55 anos, foi assassinado numa emboscada em São Paulo.
Durante o governo de Getúlio Vargas, nos anos 1930, Marighella foi preso três vezes. A primeira, em 1932, após escrever um poema com críticas ao então governador da Bahia, Juracy Magalhães. Em 1936, já como integrante do PCB e morando no Rio, foi preso e torturado por subversão. Saiu da cadeia um ano depois e entrou para a clandestinidade, mas foi capturado outra vez em 1939 e passou seis anos nos antigos presídios de Fernando de Noronha e da Ilha Grande. Em 1945, com o fim do Estado Novo e a redemocratização, Marighella foi solto e, no ano seguinte, eleito parlamentar, mas perdeu o mandato em 1948, quando o partido comunista foi proscrito no governo de Eurico Dutra.
A partir de então, o militante ocupou diferentes cargos na hierarquia do PCB e chegou a viver na China por um ano. Em 1964, depois do golpe militar, ele imediatamente se tornou um adversário do regime que se instalou no poder. Semanas depois do golpe, Marighella estava na clandestinidade quando se viu encurralado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) dentro de uma sala de cinema na Tijuca. Cercado, o ativista gritou “Matem, bandidos! Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!”. Ao ouvir os berros, um agente fez um disparo à queima roupa que atingiu o peito do militante. O político baiano sobreviveu, mas ficou um ano na cadeia.
Ao deixar a prisão, Carlos Marighella começou a organizar a luta armada contra o regime. Em 1967, ele foi até expulso do PCB depois de criticar o partido, que, mesmo na clandestinidade, insistia na via política para derrotar o governo. No ano seguinte, o baiano fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo que realizou a operação mais ousada do período, em setembro de 1969, quando sequestrou o embaixador americano Charles Elbrick, no Rio. Mantido refém numa casa alugada por Fernando Gabeira no Rio Comprido, o diplomata só foi devolvido após a libertação de 15 presos políticos, enviados para o exílio no México. Entre eles, estavam os líderes estudantis José Dirceu e Vladimir Palmeira.
Àquela altura, o Ato Institucional 5 (AI-5) já estava em vigor, com os agentes da repressão autorizados a prender sem justificativa e torturar os elementos considerados subversivos. Era o início dos anos de chumbo, quando muitos opositores foram mortos nos porões do regime. Diversos integrantes da ALN foram capturados após o sequestro de Elbrick. Os aliados próximos de Marighella queriam que ele saísse do Brasil, mas o líder comunista nem cogitava fugir. Ao contrário. Sabendo que tinha virado um dos adversários mais visados pelo regime, ele pegou a Via Dutra para São Paulo, no dia 2 de novembro de 1969, com o objetivo de reordenar seu grupo, que estava abalado após várias prisões.
Marighella estava sendo caçado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Chefe do Dops, o policial era conhecido por ter comandando prisões, sessões de tortura e assassinatos de adversários da ditadura (na década de 1970, o delegado seria investigado e preso por envolvimento com esquadrões da morte e tráfico de drogas). Sabendo da forte ligação de frades dominicanos com a ALN, Fleury prendeu dois religiosos aliados de Marighella, o Frei Fernando e o Frei Ivo, que foram obrigados a combinar um encontro com o guerrilheiro sob às ordens do delegado. Eram eles que estavam no fusca azul parado na Alameda Casa Branca esperando Marighella, no dia 4 de novembro de 1969.
Quando ele entrou no carro, os agentes do Dops chegaram apontando armas e os frades se jogaram na rua. Marighella esboçou uma reação, mas foi morto com vários disparos. Dentro da pasta preta do militante, os policiais acharam mil dólares em dinheiro e uma cápsula de cianureto que ele carregava porque preferia se matar do que ser preso e torturado mais uma vez. De acordo com a biografia de Marighella escrita por Mário Magalhães, que embasou o filme de 2019 dirigido por Wagner Moura com Seu Jorge no papel principal, o líder da ALN não estava armado quando foi morto. O guerrilheiro foi enterrado como um indigente no cemitério de Vila Formosa, na capital paulistana.
Em setembro, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública para que 37 ex-agentes da ditadura sejam responsabilizados na esfera cível pela execução do guerrilheiro, 55 anos depois dos tiros na Alameda Casa Branca. O MPF pede, entre outras condenações, que os homens envolvidos no assassinato percam suas aposentadorias, restituam gastos do Estado brasileiro com indenizações concedidas a familiares da vítima e paguem compensações financeiras por danos morais coletivos que a repressão política causou à sociedade. No caso de réus já falecidos, de acordo com a ação, os herdeiros deverão arcar com as reparações.
Fonte: Por William Helal Filho no site O GLOBO / Acervo da GLOBO