A pergunta sobre João Calvino (1509-1564) e o seu papel em Genebra durante a Reforma Protestante é complexa e frequentemente carregada de controvérsias, sendo um ponto central de debate entre apologistas e críticos há séculos.
É importante contextualizar: o século XVI foi uma época de extrema intolerância religiosa, tanto no mundo católico quanto no protestante. A ideia de “heresia” não era apenas um erro teológico, mas uma ameaça à ordem social, à alma da comunidade e à estabilidade política. Genebra, sob a influência de Calvino, não foi exceção a essa regra da época.
Resumo Direto
Com base nos registros oficiais da época (os Registros do Conselho de Genebra), durante o período em que Calvino foi uma figura proeminente na cidade (de 1541 até a sua morte em 1564), estima-se que:
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Prisões: Centenas de pessoas foram presas por infrações morais (como dançar ou jogar cartas) e, principalmente, por discordância religiosa. A prisão era uma punição comum.
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Exílios (Desterros): Dezenas de famílias foram expulsas de Genebra por se recusarem a aceitar as normas religiosas e o regime estabelecido. O exílio era uma pena frequente para dissidentes.
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Execuções (Mortes): 34 pessoas foram executadas por sentença do Conselho, a maioria por crimes civis como homicídio, roubo ou traição. 58 pessoas foram executadas por acusação de bruxaria. No que diz respeito especificamente à heresia religiosa, houve uma execução que se destaca e que é inseparável do nome de Calvino: a morte de Miguel Servet (1511-1553).
O Caso de Miguel Servet
A execução do médico e teólogo espanhol Miguel Servet em 1553 é o evento mais notório e que define a controvérsia em torno de Calvino.
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O que aconteceu: Servet rejeitava a doutrina da Trindade. Após trocar correspondências hostis com Calvino, ele foi preso pela Inquisição Católica em Vienne (França), mas escapou. Inexplicavelmente, ele fugiu para Genebra, onde foi reconhecido e preso.
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O processo: Calvino foi fundamental na acusação de heresia contra Servet. O Conselho de Genebra, após um julgamento, condenou-o à morte por negar a Trindade e o batismo infantil.
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A execução: Em 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado na fogueira.
Este evento foi chocante até para alguns contemporâneos. Teólogos protestantes como Sebastian Castellio criticaram publicamente a execução, argumentando que matar alguém por suas ideias era errado, usando o argumento: “Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem”.
Análise e Contextualização
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Calvino não era o governante: É um equívoco comum imaginar Calvino como um “ditador” de Genebra. O poder secular estava nas mãos do Conselho da Cidade, composto por magistrados leigos. Calvino era um líder religioso e um conselheiro influente, mas não tinha autoridade para prender, exilar ou executar ninguém. Ele podia acusar, persuadir e pressionar o Conselho, mas a decisão final e a aplicação da lei eram do governo civil.
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Uma Época Diferente: Julgar o século XVI com a lente moral do século XXI é um anacronismo. A perseguição religiosa era a norma, não a exceção. A Inquisição Católica, por exemplo, era muito mais letal e sistemática. Isso não serve para “absolver” Calvino, mas para entender que suas ações eram consideradas (por muitos na época) como uma defesa necessária da verdade e da ordem pública.
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O Objetivo de Calvino: Calvino não buscava poder pelo poder. Ele visava estabelecer uma “Nova Jerusalém” em Genebra, uma cidade-estado totalmente governada pelos princípios bíblicos, onde a lei civil e a lei religiosa estivessem totalmente alinhadas. Nesse sistema, a heresia era uma traição contra Deus e o Estado, merecendo punição severa.
Conclusão
Portanto, na época de Calvino em Genebra:
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Prisões e exílios foram numerosos para impor a disciplina religiosa e moral.
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Execuções aconteceram, majoritariamente por crimes civis e acusações de bruxaria, comuns na Europa da época.
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A execução por heresia foi rara (o caso de Servet é o único famoso), mas seu impacto histórico foi enorme.
A culpa pelo regime rigoroso de Genebra é compartilhada entre João Calvino, que forneceu a base teológica e pressionou por sua aplicação rigorosa, e o Conselho secular de Genebra, que detinha o poder de executar essas leis e agia frequentemente por motivos políticos de controle social.
A morte de Servet, em particular, permanece como uma mancha significativa no legado de Calvino, representando a face intolerante da Reforma, em contraste com seus enormes contributos teológicos e intelectuais.