Pra começar, bora falar uma verdade que quase ninguém tem coragem de dizer: o mundo só funciona porque tem gente cuidando. E quem é que cuida? Quem cozinha, limpa, cuida dos filhos, dos idosos, dos doentes, dá suporte emocional, segura as pontas da família e da vida? A resposta é direta: são, em sua maioria, as mulheres.
Pois é, isso tem nome — se chama trabalho de cuidado. Aquele que todo mundo precisa, mas quase ninguém reconhece, valoriza ou paga por ele. E o pior: sempre tentaram fazer parecer que isso é “amor”, “jeito feminino”, “vocação”. Mas, na prática, é exploração disfarçada de afeto.
E pra quem acha que isso é só discurso distante, teórico… é só olhar pra nossa própria história. Na minha família, isso tem nome, tem rosto e uma vida inteira atravessada por esse ciclo.
Desde muito cedo, minha mãe começou a trabalhar dentro de casa, com apenas oito anos de idade. Isso mesmo: oito anos. Uma criança. Enquanto meu avô e minha avó iam pra roça, ela ficava pra cuidar da casa e dos irmãos mais novos, inclusive um deles, bebê de colo. Imagina isso: uma criança de oito anos tendo que cozinhar, lavar roupa, limpar a casa e, além de tudo, cuidar dos irmãos menores. Enquanto outras crianças estavam brincando, aprendendo, vivendo… ela já carregava uma responsabilidade que não cabia nos seus ombros pequenos.
E como se não bastasse, a vida seguiu desse jeito. Aos 14 anos, ela se casou – acreditando que seria uma folga, uma chance de viver algo diferente, de aliviar aquele peso. Mas, na prática, foi só uma troca de responsabilidades. E de cuidar dos irmãos passou direto pra cuidar dos filhos, da sua casa e do esposo. Então, quando terminou de criar os filhos… agora cuida de 6 netos. Uma vida inteira cuidando de todo mundo, menos dela.
Pra piorar, ela não teve infância. Não teve adolescência. Não teve juventude. E também não teve acesso à educação. Só pôde concluir o ensino fundamental e médio já na fase adulta, por volta dos 45 anos de idade, no formato da Educação de Jovens e Adultos (EJA) — quando boa parte dos sonhos já tinha sido engolida pela obrigação de cuidar.
Hoje, aos 50 anos, ela carrega não só o cansaço físico, mas também impactos emocionais profundos, marcas de uma vida inteira que nunca permitiu que ela simplesmente existisse por ela mesma. Uma mulher exausta, que teve que abrir mão de si pra sustentar todo mundo — física, emocional e mentalmente.
E sabe o que é pior? Isso não é uma história isolada. A escritora e ativista bell hooks já dizia: ensinaram às mulheres que amar é cuidar, servir, se doar e colocar todo mundo na frente delas mesmas. Isso não é natural. Isso é aprendido. É imposto. É cultural.
Além disso, a pensadora Silvia Federici também escancara essa verdade: desde que o capitalismo começou, alguém precisou fazer, de graça ou por quase nada, o trabalho que ninguém queria pagar — cuidar da casa, da família, da comunidade. E adivinha quem? Sempre as mulheres. Ela não deixa dúvidas: sem esse trabalho invisível, nem o capitalismo teria funcionado.
Da mesma forma, a filósofa Angela Davis faz um alerta ainda mais pesado: essa exploração nunca foi igual pra todo mundo. Mulheres negras, indígenas e periféricas carregam uma carga ainda mais cruel. Além de cuidar das próprias famílias, também foram e continuam sendo exploradas pra cuidar das famílias ricas e brancas — quase sempre recebendo migalhas por isso.
E pra completar, a socióloga Nancy Fraser liga mais um sinal vermelho: estamos vivendo uma crise do cuidado. As mulheres estão no mercado de trabalho, sim. Mas, adivinha? Continuam sendo as principais responsáveis pelos cuidados dentro de casa. Resultado: jornada dupla, tripla, exaustão, adoecimento… e uma sociedade inteira fingindo que não é problema dela.
Diante disso, não dá mais pra romantizar essa realidade. Não é amor. Não é dom. É exploração estrutural. É uma engrenagem que faz o mundo girar — sustentada há séculos às custas do tempo, da saúde e da vida das mulheres.
Por isso, a pergunta que precisa ecoar cada vez mais alto é simples, direta e urgente:
👉🏽 Quem cuida de quem cuida?