Um estudo inédito realizado pelo pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana, 78, aponta que 1.654 camponeses foram mortos ou desapareceram do golpe de 1964 até a promulgação da Constituição, em 1988. Viana considera o governo de José Sarney (1985-1989) um “regime de exceção, como [consideram] as leis da justiça de transição, período este que herdou parte da política repressiva da ditadura, com maior gravidade sobre os camponeses”.
É um número bastante superior às conclusões do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que funcionou de 2012 a 2014 e investigou crimes cometidos de 1964 a 1988. No documento final, a comissão reconheceu apenas 41 camponeses do total de 434 mortos e desaparecidos, deixando para um anexo temático as informações sobre a violência contra camponeses e povos indígenas. No estudo, Viana escreveu que a CNV “diminuiu seu papel histórico ao reconhecer apenas 434 mortos e desaparecidos, apesar de conhecer a existência de milhares de mortos e desaparecidos forçados” e que ela “reproduziu a exclusão e a discriminação da classe dominante contra os camponeses e os indígenas”.
Viana viveu intensamente os anos de chumbo da ditadura. Como militante da luta armada na Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso e torturado pelos agentes da repressão do DOI-Codi do Rio de Janeiro. Ficou preso por nove anos e dez meses, período em que participou de uma greve de fome que durou 32 dias contra o projeto de anistia parcial da ditadura.
Após ter deixado a prisão, no começo dos anos 1980, mudou-se para Mato Grosso, onde se formou em medicina e ajudou a fundar o PT estadual – já havia ajudado a fundar o PT em Belo Horizonte. Em Cuiabá, elegeu-se deputado federal. Durante seu mandato, presidiu a antiga Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias na Câmara dos Deputados. Em Mato Grosso, conheceu de perto a questão camponesa ao acompanhar diversos movimentos de luta pela terra. Integrou duas vezes o Diretório Nacional do PT (de 1984 a 1990 e de 1993 a 1995) e foi secretário de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006).
Em agosto de 2012, certos de que o tema dos camponeses mortos e desaparecidos não tinha recebido a devida atenção na justiça de transição, diversos movimentos sociais, acadêmicos e pesquisadores criaram a Comissão Camponesa da Verdade (CCV), que passou a investigar o assunto com mais profundidade e da qual Viana é membro desde o começo. Em 2015, a CCV concluiu que 1.196 camponeses foram mortos ou desapareceram de 1964 a 1985.
O estudo de Viana, intitulado “A resistência camponesa à ditadura militar”, tem mais de 400 páginas, ainda não foi publicado e recorre a conclusões da CCV, a dezenas de estudos anteriores, a estatísticas, a artigos e a levantamentos próprios para apontar o impressionante número de pelo menos 16.578 camponeses vítimas de algum tipo de “repressão política” no período 1964-1988 em variadas formas, do assassinato à prisão, de agressões físicas a tentativas de homicídio. Desse total, segundo Viana, ao menos 7.512 ocorreram apenas durante os quatro primeiros anos do governo Sarney (1985-1988). “Os números são revisados constantemente e só tendem a aumentar”, disse Viana.
Do total das vítimas, cerca de 8 mil foram identificadas nominalmente e outras 8.153 “não [foram] identificadas nominalmente, mas indicadas por fontes confiáveis a partir de acontecimentos verificáveis”.
Em entrevista à Agência Pública, Viana ressalta a importância histórica dos mecanismos encarregados da justiça de transição como a CNV, mas faz uma “avaliação crítica”, pois a comissão “limitou-se em conhecer os casos de graves violações dos direitos dos povos indígenas, camponeses e religiosos e, ao mesmo tempo, não reconhecê-los, formal e integralmente, como vítimas dessas graves e sistemáticas violações de direitos humanos”.
Por que você decidiu estender seu levantamento até 1988?
Porque de 85 a 88 a ditadura não nomeou mais os chefes militares como ditadores, mas admitiu que se nomeasse um civil, o José Sarney. E todas as leis e a historiografia consideram que o período de exceção vai até a constitucionalização. E estabelecem como marco da constitucionalização a promulgação da Constituição Federal de 88. É um governo civil-militar, o do Sarney. Do total de mortos e desaparecidos citados no meu levantamento, a maioria foi assassinada no período João Figueiredo [1979-1985] e no período Sarney [1985-1989]. Em 1964, por óbvio, foi a grande onda repressiva, o grande impacto, com muitas prisões, ela foi ampla. Mas não foi tão letal. Toda morte é relevante, mas eu estou falando de quantitativos aqui. Em relação aos presos e aos perseguidos, na ditadura, nesse primeiro momento, a morte era seletiva.
Uma parte dessas mortes e desaparecimentos de camponeses foi financiada por fazendeiros, executada por milícias, polícias estaduais. Qual o papel e a responsabilidade da ditadura nessas mortes?
Por que você tem mais mortes de camponeses no período Figueiredo e no período [Sarney] quando já existia abertura? Inclusive já tinha havido anistia. Por uma razão muito simples. Muito simples, não. Ela é complexa, mas você pode sintetizar. É que o projeto de democratização, o projeto de estado democrático previsto no acordo [de poder] da anistia, não incluía os camponeses nem indígenas. Não incluía você resolver os direitos sociais e políticos desses grupos.
Em que sentido não incluiu?
Não incluiu em todos os sentidos. Na verdade, você tem que olhar que quando se fez esse acordo – que não é um acordo só da anistia, é o acordo do poder, foi feito lá em cima –, já em 1982, se tinha pactuado com as novas e velhas oligarquias estaduais que já era um outro padrão de pessoas [vítimas], não era uma continuidade. Mas todas elas eram baseadas fundamentalmente em grandes propriedades de terra, de grandes latifundiários. Ou, então, já era do novo agronegócio, que eles começaram a mesclar em função do que o [José] Martins fala, que é a modernização conservadora no campo. Ou seja, você conserva o latifúndio, não faz reforma agrária. Você melhora tecnicamente as forças produtivas, como dizem os marxistas, e moderniza do ponto de vista capitalista, mas não moderniza as relações sociais nem as relações de direitos. Por isso que eles resistiram à sindicalização dos trabalhadores rurais. Eles resistiam a que os camponeses fizessem manifestações e resistiam a que os camponeses lutassem pela terra. Então surge uma elite agroexportadora, agroindustrial, que foi fundamental para estabelecer o poder nos estados. Então o que aconteceu? Quando o Exército retira o DOI-Codi, vamos dizer assim, desmonta o DOI-Codi, ele chama esse pessoal do DOI-Codi para o CIE, o Centro de Informações do Exército, mas não desmonta o CIE, não.
Nem da Marinha nem da Aeronáutica.
Não, não. Dos serviços militares de informação não desmontaram nada. Até hoje funcionam. O que eles desmontaram foi a tropa especializada extranormal da estrutura. Foi quando se gerou um conflito, quando os generais queriam assumir de fato a transição. E o [general] Silvio Frota tenta o golpe e o [Ernesto] Geisel tira eles da jogada. Pois bem, eles desmontaram o DOI-Codi. Então a linha de frente do combate ao “problema social do campo” passou a ser feita pela polícia estadual, que sempre foi subordinada, na ditadura, ao esquema do Exército. Aquela comunidade de informação, quer dizer, todos os serviços de informação e de polícia e repressão estavam subordinados aos militares. Eles identificavam o “problema social do campo” como um problema político, era uma questão de “não deixar ascender um movimento que politicamente vai se expressar também”. Os governos estaduais passam a ter uma certa autonomia, mas não muita. Tanto é que, quando os governos estaduais novos, de 1982 em diante, principalmente, se estabeleceram, a maioria das secretarias estaduais de Segurança era chefiada por generais. Era uma forma de controle que o Exército tinha sobre o sistema repressivo.
Então havia uma tutela.
Isso, havia e era legalizada. Isso era exposto, era uma coisa acordada. Esse que foi o acordo de poder, na verdade. A Polícia Militar já estava no esquema de repressão, não é que ela não estivesse antes. O que acontece é que ela não era mais coordenada pelo sistema do CIE. Eles só orientavam. Quando tinha um conflito maior, os militares davam suporte. Em vários conflitos do campo, o Exército interveio ou deu suporte. Com tropas ou sem tropas.
É possível dizer então que a violência do campo foi tutelada, patrocinada ou mantida pela própria ditadura?
Sim, mas não só por isso que eu disse. Historicamente, desde o Brasil Colônia, o Estado que chegava ao campo na forma de vilas, fazendas ou grandes plantações era representado pelo próprio latifundiário. Originalmente se chamavam os “coronéis”. E o poder político era fundamentalmente deles no interior do país. Claro que eles repassavam isso para lideranças naquele esquema da Velha República. Esse Estado profundo a ditadura não alterou, porque eles eram a base de apoio da ditadura. É preciso ver que os eleitores e o pessoal que era do PSD e da própria UDN, menos, eram a base política deles, então eles não iam mexer nisso. É um acordo. Então por que recrudesceu a luta camponesa e a repressão? Porque de um lado era uma oportunidade. Os trabalhadores organizaram sindicatos, lutaram pela terra, pelos direitos trabalhistas, aposentadoria, coisa que também não era reconhecida. Por outro lado, era o desejo de que a própria ditadura, os generais, com essa elite, inclusive a burguesia industrial também estava nessa, de que eles pudessem controlar o movimento camponês, não deixar que eles ascendessem socialmente. Não deixar que acontecesse o que aconteceu no final [das décadas] de 50 e 60.