Em um país marcado por altos índices de violência de gênero, um crime cruel e ainda pouco conhecido exige atenção urgente: o homicídio vicário. Trata-se da prática em que o agressor, querendo punir ou ferir uma mulher, atinge pessoas que ela ama como filhos, filhas, pais ou irmãos. O objetivo é claro: causar sofrimento extremo, sem precisar atacar a mulher diretamente.
Esse tipo de crime representa uma das faces mais brutais da violência de gênero. Quando o agressor percebe que perdeu o controle sobre a mulher, seja após a separação, a adoção de medidas protetivas ou o fortalecimento dela, enquanto pessoa, ele escolhe feri-la da pior forma possível: destruindo seus laços afetivos mais importantes.
Apesar da gravidade, o homicídio vicário ainda não tem uma definição legal específica no Brasil. Atualmente, os crimes são tratados como homicídios comuns, mas isso não é suficiente para revelar o verdadeiro contexto: trata-se de um crime de gênero, praticado para subjugar e castigar a mulher de forma indireta.
A legislação brasileira já reconhece várias formas de violência contra a mulher, como está previsto na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que inclui a violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. O homicídio vicário, ainda que não esteja expressamente listado, pode ser visto como uma forma extremada de violência psicológica, impondo à mulher uma dor insuportável e permanente.
O Código Penal, por sua vez, prevê agravantes para o homicídio, como o motivo torpe e o uso de recursos que dificultem a defesa da vítima (art. 121, §2º). Ainda assim, falta uma norma que reconheça a motivação de gênero e a intenção de atingir a mulher através da dor.
Mais do que um problema penal, o homicídio vicário é uma grave violação aos direitos humanos e aos princípios fundamentais da nossa Constituição, como a proteção à vida, à dignidade da pessoa humana e à segurança da família.
A Convenção de Belém do Pará, tratado internacional que o Brasil assinou, determina que o Estado tome todas as medidas para prevenir e punir a violência contra a mulher. Reconhecer o homicídio vicário como crime específico é, portanto, não apenas uma necessidade social, mas também um compromisso internacional assumido pelo país.
Infelizmente, todos os dias mães, filhas, crianças e familiares são vítimas dessa forma de vingança. Muitos deles são mortos apenas para que uma mulher, já vítima de violência, se sinta destruída emocionalmente e carregue o peso de uma culpa que não é sua.
É urgente dar nome a essa violência. É preciso criar leis que reconheçam o homicídio vicário como uma forma brutal de violência de gênero, para que a justiça possa proteger de verdade as mulheres e seus entes queridos. A dor de perder um filho, um irmão ou um pai para a violência não pode continuar sendo invisibilizada. O homicídio vicário precisa ser reconhecido e combatido, com todo o rigor que a proteção à vida e à dignidade humana exige.
Enquanto não houver esse reconhecimento, continuaremos permitindo que a violência encontre novos caminhos para silenciar e punir mulheres. É hora de agir.
Autora: Advogada Kelly Garcia, atua nas áreas Cível, Processual Civil e Violência de Gênero, é presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM/PA. Já foi Conselheira da OAB/PA, Juíza do TED, e ocupou diversos cargos de liderança na defesa da mulher advogada.