O candidato democrata Joe Biden conquistou neste sábado (07/11) os votos necessários para ser o próximo presidente dos Estados Unidos, segundo as projeções dos principais grupos de mídia americanos.
O resultado representa um revés para o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que manifestou apoio ao republicano Donald Trump publicamente diversas vezes, contrariando a tradição diplomática brasileira de não interferir em pleitos de outros países — estratégia que permite estar bem posicionado para estabelecer relações com o governo eleito, seja ele qual for.
Trump, aliás, não foi o primeiro político internacional apoiado por Bolsonaro a se dar mal nas urnas.
A série de aliados perdedores levou brasileiros a fazerem piada nos últimos dias nas redes sociais chamando o presidente de “Mick Jagger da política”. A brincadeira é uma referência a fama de pé frio que colou no rockeiro britânico após a Copa do Mundo de 2010, na África do Sul — foi quando ele compareceu a algumas partidas, sempre na torcida do país que acabava derrotado.
O “azar” de Bolsonaro, porém, não gera apenas memes na internet. Para analistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, as “apostas erradas” na eleição de outros países contribuem para aumentar o isolamento internacional do Brasil e minar sua capacidade de liderança na América do Sul.
Hoje, o governo brasileiro tem relação distanciada com seu maior vizinho, a Argentina, depois que Bolsonaro apoiou publicamente a reeleição de Mauricio Macri, derrotado pelo atual presidente Alberto Fernández. Logo após o resultado, Bolsonaro lamentou a vitória do peronista e disse que a “Argentina escolheu mal”.
Também na América do Sul, o governo Bolsonaro apoiou tentativas frustradas de governos de direita na Bolívia (reconhecendo Jeanine Añez como presidente após a deposição militar de Evo Morales) e Venezuela (onde apoiou o autoproclamado presidente Juan Guaidó). No primeiro caso, o partido de Morales retomou o o governo boliviano um ano depois, com a eleição de Luis Arce presidente em primeiro turno. Já na Venezuela, Guaidó não conseguiu obter o poder de fato, que segue nas mãos do autoritário presidente Nicolás Maduro.
A lista de aliados de Bolsonaro que têm perdido força nas urnas inclui ainda o italiano Matteo Salvini — líder do partido de extrema-direita Liga, que tenta ser primeiro-ministro da Itália desde 2019 — e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, que após sucessivos pleitos sem conseguir conquistar maioria do Parlamento teve que fazer um acordo repartindo o governo e se comprometendo a deixar o cargo em outubro de 2021.
Interferência contraria Carta da ONU
Segundo o professor Juliano Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), a postura de Bolsonaro de apoiar candidatos no exterior contraria o princípio de “autodeterminação dos povos” previsto na Carta das Nações Unidas, documento que marca a criação da ONU em 1945 e ao qual o Brasil aderiu.
Seguir esse princípio significa respeitar o direito da população de cada país se autogovernar e decidir livremente a sua situação política.
“A política externa do governo Bolsonaro tem sido um desastre. Desde o seu início, fez apostas incorretas que romperam com uma tradição longa da diplomacia brasileira de se pautar pelos princípios do direito internacional, como não intervenção (em outras nações), a autodeterminação dos povos”, afirma o professor.
“E o pior é que todas as apostas feitas têm se mostrado incorretas. Isso nos cobra um preço que é o isolamento em relação às nossas principais alianças ao longo dos anos”, acrescenta.
Para Cortinhas, Bolsonaro apoia candidatos em outros países porque guia sua política externa de acordo com seus interesses ideológicos e eleitorais, e não pensando na melhor estratégia para o país.
Ele critica o que vê como “declarações irrefletidas” do presidente pelo Twitter e na porta do Palácio do Alvorada, onde quase todo dia conversa com apoiadores.
Na quarta-feira, quando a apuração dos votos avançava nos Estados Unidos e já indicava probabilidade maior de vitória para Biden, Bolsonaro disse que “a esperança é a última que morre” ao ser questionado por uma apoiadora sobre a situação de Trump.
“A diplomacia é feita de símbolos. As manifestações de intenção e os discursos são muito importantes. E isso tem sido feito pelo governo de forma muito atabalhoada, sem que haja uma reflexão sobre qual é o interesse nacional e quais são as melhores posições para o Brasil”, reforça Cortinhas.
Ex-embaixador do Brasil em Washington (1999-2004) e Londres (1994-1999), Rubens Barbosa também vê uma estratégia política na postura de Bolsonaro.
“Ele está sendo coerente com a posição dele, essa posição nacional-populista de direita. Então, ele apoia os candidatos que estão na mesma linha dele”, disse à BBC News Brasil.
Na sua visão, o apoio de Bolsonaro não tem qualquer impacto na eleição americana, mas pode ter repercussão interna no caso dos países vizinhos.
“Há uma contradição entre o discurso de Bolsonaro de que o Brasil não interfere na política de outros países e a ação dele na política da Bolívia, da Argentina. Essa posição deixa o Brasil cada vez mais sem voz na América do Sul”, afirmou ainda.
Biden pragmático com Brasil
Apesar da insistente torcida de Bolsonaro por Trump, a expectativa dos especialistas entrevistados é que o futuro governo Biden mantenha uma relação pragmática com o Brasil, país que não está entre as prioridades na política externa americana.
“Não tem o menor sentido o presidente de um país ficar nessa torcida por um governo ou outro na eleição de outros países, muito menos se pronunciar, mas acredito que o governo democrata será absolutamente pragmático e vai manter uma relação com o Brasil de acordo com o que interessa aos Estados Unidos”, afirma a professora do Instituto de Relações Internacionais da USP Maria Antonieta Lins.
A expectativa é que o governo Biden siga pressionando o Brasil a proibir a empresa chinesa Huawei de participar da implementação da tecnologia de quinta geração de telecomunicações (5G) no país. Esse é uma agenda da gestão Trump que deve ser mantida porque a expansão da Huawei é vista como uma ameaça à segurança nacional americana.
Por outro lado, uma mudança importante na política externa dos Estados Unidos que terá impacto no Brasil é o esperado alinhamento do governo Biden com países europeus pela preservação da Amazônia. Durante a campanha eleitoral, o democrata chegou a citar a possibilidade de retaliações econômicas contra o Brasil caso o governo Bolsonaro não aceite recursos externos para combater a destruição da floresta.
“Eu acho que a relação institucional Brasil-Estados Unidos não vai se alterar (com a eleição de Biden), o que vai se alterar é a relação entre os presidentes. O governo americano vai continuar a tomar decisões de acordo com o interesse deles. Essa questão ambiental não é uma questão contra o Brasil, é uma prioridade global que tem desdobramentos sobre o Brasil”, ressalta o embaixador Rubens Barbosa.
Juliano Cortinhas, da UnB, também acredita no pragmatismo americano, mas prevê que os EUA, sob Biden, adotarão “posturas mais firmes” na relação com o Brasil. Historicamente, os democratas têm uma sensibilidade maior à agenda ambiental e de direitos humanos, o que se choca com os posicionamentos do governo brasileiro hoje.
“O Brasil é um país importante, então não imagino que o Biden vai virar as costas para o Brasil. Mas as posições (do governo Bolsonaro) em relação ao meio ambiente, aos direitos humanos, aos direitos das mulheres, tudo isso faz com que o Biden esteja em posição de fazer uma série de exigências para negociar com o Brasil”, afirma Cortinhas.