Embora o mundo esteja voltado para a Amazônia por causa da COP30, a Amazônia que vive, que pulsa e que sangra segue fora dos holofotes.
É a Amazônia do barro, das estradas esburacadas, da ausência do Estado.
É a Amazônia de onde venho.
Apesar dos discursos grandiosos sobre sustentabilidade, clima e preservação, o que temos no oeste do Pará é abandono.
O trecho de apenas 40 quilômetros entre Divinópolis e Itaituba, por exemplo, parece pequeno no mapa.
Mas, na vida real, ele se transforma em um calvário para quem precisa de socorro médico.
Dentro de uma ambulância, esse percurso se torna uma jornada de sofrimento — uma viagem que machuca o corpo e fere a dignidade.
Aliás, vale a pena lembrar: no ano de 2020, enfermeiros precisaram retirar um paciente da ambulância e empurrar a maca por um trecho da Transamazônica, porque a estrada era simplesmente intransitável.
Empurraram a vida sobre o barro.
Empurraram a dignidade sobre a omissão do poder público.
Essa cena não foi ficção. Foi manchete.
Foi dor.
E poderia ter sido morte.
Além disso, o tempo de chegada ao hospital não é contado apenas em minutos.
Ele é medido em dores suportadas, em solavancos sobre buracos, em esperança que se dissolve na lama.
Enquanto se fala em investimentos internacionais para “salvar a floresta”, a população que mora nela mal tem uma estrada decente para alcançar o mínimo.
Ademais, há um outro retrato cruel desse abandono: as pontes de concreto que estão prontas, mas continuam sem uso.
A ponte do rio Leitoso, em Rurópolis, por exemplo, está finalizada há anos. No entanto, por falta de terraplanagem no entorno, a população ainda arrisca a própria vida passando por uma velha ponte de madeira improvisada ao lado.
Os acidentes são frequentes. O medo é constante. A sensação é de desrespeito.
E essa realidade não é exclusiva de Rurópolis — se repete ao longo de quase toda a Transamazônica.
Por isso, é urgente dizer que a Amazônia não é uma ideia.
A Amazônia tem CPF.
Tem nome, cor, cansaço e endereço.
Não cabe num slogan.
Ela existe — e resiste — mesmo sem pavimentação, mesmo sem visibilidade.
Do mesmo modo, é preciso entender que as políticas públicas não chegam ao interior com a mesma força com que chegam às capitais.
O que chega por aqui, na maioria das vezes, é o resto.
É o improviso, a promessa, o “ano que vem”, o “estamos vendo”, o “não tem recurso”.
E, enquanto isso, seguimos adoecendo — no corpo e na alma.
Em contrapartida, quando o governo do Estado anuncia metas de desenvolvimento, o interior continua sendo o lugar da espera.
Esperamos asfalto.
Esperamos internet.
Esperamos telefonia móvel.
Esperamos atendimento.
Esperamos políticas públicas.
Esperamos por um país que, de fato, nos veja.
Logo, não dá mais para romantizar a floresta e esquecer sua gente.
É incoerente discursar sobre clima quando há comunidades inteiras isoladas por falta de estrada.
É injusto falar em carbono, quando não se garante o básico para quem planta, pesca, sobrevive nas margens da rodovia Transamazônica.
Dessa forma, se a COP30 quer realmente ser histórica, precisa ouvir quem vive no centro da floresta.
Quem conhece os rios pelo nome.
Quem luta todos os dias para continuar existindo onde o Estado não chega.
Por fim, o Brasil precisa compreender que a Amazônia não pode ser apenas cenário.
Ela é sujeito.
E enquanto continuarem nos tratando como borda, a ferida da Transamazônica continuará aberta.
Sangrando, buraco por buraco.
Como a poeira que se levanta no verão, chamada de puaca por quem vive aqui, a invisibilidade cobre tudo: esconde a estrada, encobre o horizonte e apaga um povo inteiro da visão dos governos.
Essa poeira não cega apenas os motoristas.
Ela cega as políticas públicas.
E transforma vidas inteiras em borrões.
Silenciosa, como quem já gritou demais.