O Golpe Militar de 64 e seu contexto histórico-político

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O Golpe Militar de 64 e seu contexto histórico-político
Golpe Militar de 1964 deixou marcas profundas na sociedade brasileira / Foto: Reprodução
Jorge Ferreira resgata a história do país e traça um panorama das disputas pelo poder no Brasil republicano

O Brasil, em 1889, saiu de um longo regime monárquico cuja base econômica era a escravidão. Nesse sentido, a implantação da República trouxe uma novidade: a noção de que todos são iguais perante a lei”, aponta Jorge Ferreira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. De modo singular, o professor e pesquisador Jorge Ferreira tenta compreender o Golpe Civil-Militar de 1964 a partir de sua dimensão histórica e, para tanto, descreve a complexidade da história brasileira da Primeira República até a nossa contemporaneidade. É a partir da compreensão deste contexto histórico de lutas e disputas pelo poder, que o regime de exceção que vigorou no país de 1964 a 1985 nunca foi uma surpresa, senão resultado de uma conjuntura de décadas. Jorge Ferreira sustenta que, na prática, a democracia é um processo em permanente construção. “A democracia é um regime marcado pela incompletude. Sempre faltará algum direito. E cabe aos grupos sociais se organizarem, lutarem e conquistarem esse direito. É assim que funciona o regime democrático: garantir o direito de crítica e o de organização, permitindo a luta dos grupos sociais para fazer avançar os direitos de cidadania e a própria prática democrática”, avalia.

Neste contexto, era de se esperar que as demandas sociais não tenham sido sempre defendidas por grupos institucionalizados, como foi o caso das Ligas Camponesas, a vanguarda da resistência no campo. “A primeira foi fundada em 1955 no Engenho Galileia. Era entidade civil com registro em cartório. Nessa época, o Ministério do Trabalho criava todo tipo de empecilho para a criação de sindicatos rurais. Não estando submetidas à Lei de Sindicalização, a autonomia das Ligas era grande. As Ligas Camponesas lutaram contra a exploração dos latifundiários sobre os trabalhadores rurais, sobretudo a prática das expulsões da terra”, recorda Ferreira. Apesar de todas as crises democráticas a que o país foi submetido em quase 125 anos de República, o professor considera que nossa democracia atingiu certo nível de maturidade, resultado de uma herança brutal e pesada da ditadura. “As oposições atualmente lutam para chegar ao poder pelo voto democrático do povo. Não têm como estratégia alcançar o poder pela força das armas. A não ser minorias, de direita e esquerda, inexpressivas na sociedade brasileira. Creio que, se há alguma herança, é essa: a valorização da democracia após as vivências e experiências da ditadura e do autoritarismo.”

Jorge Ferreira possui graduação e mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense. É autor de Jango. Uma biografia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011).

O professor estará na Unisinos participando do Ciclo de Estudos 50 anos do Golpe de 64: Impactos, (des)caminhos e processos, no dia 27 de março, com duas conferências: Organização sindical e partidos políticos antes e pós-golpe de 1964, às 17h30min, e Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964, às 19h30min, ambas na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Mais informações http://bit.ly/Golpe50Anos.

Confira a entrevista

IHU On-Line – Como compreender a história política brasileira na primeira metade do século XX, particularmente na Primeira República  e no período entre 1930 e 1945?

Jorge Luiz Ferreira – É comum uma leitura desqualificadora de história política brasileira. A começar pela Proclamação da República, definida muitas vezes como um “golpe militar”. Pesquisas recentes demonstram que se a República foi implantada por uma operação militar, a ideia de República não era desconhecida nos debates políticos de fins do século XIX. O Manifesto Republicano de 1870  e a fundação de diversos clubes republicanos em várias cidades demonstram que a ideia de República não era novidade. Em muitos livros didáticos encontra-se a famosa definição de Aristides Lobo  sobre o 15 de novembro: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”. É a ideia de que se tratou de um ato de força sem a participação popular. Mas se citarmos a frase que se segue àquela, teremos outra interpretação: “O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos”. As pesquisas mostram que o ato da implantação da República foi uma surpresa, mas a ideia de República, não. Por isso o “entusiasmo” veio depois do “atônito”.

O Brasil, em 1889, saiu de um longo regime monárquico cuja base econômica era a escravidão. Nesse sentido, a implantação da República trouxe uma novidade: a noção de que todos são iguais perante a lei. Isso, a meu ver, é muito importante. Antes a lei diga que todos são iguais do que o contrário. A ideia de que “todos são iguais perante a lei” é ponto de partida para a organização e a luta dos grupos sociais marginalizados e discriminados para que, de fato, sejam reconhecidos como iguais.

Mas se a construção do ideal republicano é uma luta que vem até hoje, também é o sistema democrático-representativo, também conhecido como democracia-liberal. Na Primeira República (1889-1930), a República era liberal, mas não democrática. A Constituição de 1881 privilegiou os direitos civis e ignorou os direitos sociais. A Justiça estava sob o controle do poder privado. Os direitos políticos eram exercidos com base na farsa eleitoral. Não havia, inclusive, a noção de que no Brasil viviam “brasileiros”. A força do regionalismo era tamanha que os brasileiros se definiam por seus estados de nascimento. Os partidos políticos eram regionais: Partido Republicano Rio-Grandense, Partido Republicano Mineiro, Partido Republicano Paulista, entre outros.

Mas eu não partilho das versões que definem a Primeira República como um regime afastado do povo, resultado da violência eleitoral e vazio de ideias. E, por isso, “decadente” e “velha”. Essa República sofreu um processo de desqualificação em período posterior a 1930. Foram os ideólogos do Estado Novo que, com objetivo de legitimar a ditadura, interpretada como algo “novo”, nomearam o período anterior de “velho”, no sentido pejorativo: a “República Velha”, ultrapassada e decadente e, por isso, merecedora de ser derrubada pela Revolução de 1930 .

Apesar da prática liberal-excludente, os políticos da Primeira República tinham que manter relações com o eleitorado e mobilizá-lo para votar. Trabalhadores se organizaram em partidos e sindicatos. Várias rebeliões populares ocorreram, sendo as mais conhecidas Canudos , Contestado  e a da Vacina , no Rio de Janeiro. Na década de 1920, artistas e intelectuais apresentavam produção inovadora. Profissionais na área da saúde e da educação elaboraram projetos para o país. E o que dizer da criação cultural popular que até hoje está presente, como na música? A Primeira República foi liberal e oligárquica, mas não foi um vazio como quiseram ver os ideólogos do Estado Novo .

Com o período que se abre com a Revolução de 1930 o panorama é outro. A democracia-liberal sofria críticas severas na Europa. As soluções pareciam vir das ideologias autoritárias. No Brasil não foi diferente. O Governo Provisório (1930-1934) adotou o ideal autoritário, mas, afinado com um movimento planetário, empenhou-se em dar resolução à chamada “questão social”. Não se tratava da “astúcia” política de Vargas  para desmobilizar os trabalhadores, ou, ainda, do “populismo”. Não se podia mais ignorar as reivindicações dos trabalhadores. Também não se podia mais tratar os operários como mera mão de obra descartável. Afinal, como levar adiante o projeto de construir uma nação, com trabalhadores famintos, doentes e desamparados socialmente? A promulgação de leis sociais no Brasil acompanhou projetos similares que ocorriam em outras partes do mundo. Era a modernidade da época. Para os trabalhadores, a década de 1930 foi um período de aprendizagem de cidadania social.

Entre 1930 e 1937 a sociedade brasileira conheceu um rico período em termos de organização social e da vida política do país. Vários partidos políticos foram fundados. Direitas e esquerdas cresceram e radicalizaram. Foi também um avanço na construção do ideal de democracia representativa. Em 1933 houve a primeira eleição realmente democrática no país, com voto secreto e fiscalizada pela recém-criada Justiça Eleitoral. Mais ainda, as mulheres tiveram direito ao voto, duplicando o número de votantes. A Assembleia Nacional Constituinte de 1934 formulou a primeira Constituição fundamentada nos ideais da democracia-liberal. Entre 1934 e 1937 o país ensaiou sua primeira experiência de democracia-representativa, mas de vida breve, logo sepultada com o golpe do Estado Novo em 1937. Com a democracia-liberal em baixa no contexto político europeu, Vargas não teve problemas em implantar uma ditadura que extinguiu qualquer tipo de representação: partidos políticos, eleições e assembleias parlamentares.

IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de democracia nas décadas que antecedem o regime militar e de que maneira o golpe foi um freio às pretensões republicanas da época?

Jorge Luiz Ferreira – Durante todo o ano de 1945 o país viveu o período de transição da ditadura para a democracia e, a partir de 1946, conheceu efetivamente sua primeira experiência de democracia representativa. A Constituição de 1946 preservou os direitos sociais. As eleições, fiscalizadas pela Justiça Eleitoral, foram periódicas e, até 1964, o calendário eleitoral foi cumprido. Os eleitos tomaram posse. Os partidos políticos eram nacionais e com projetos ideológicos definidos, sendo identificados pelo eleitorado. Havia ampla liberdade de informação, expressão e organização.

É verdade que havia limitações, como a ilegalidade do Partido Comunista e a exclusão dos analfabetos dos direitos políticos. Nos dois casos, são limitações aos direitos democráticos. Contudo, o regime democrático não é, como muitos querem, um balde repleto de ouro e pedras preciosas que se encontra no final do arco-íris e, ao encontrá-lo, todos seremos felizes. A democracia é um regime marcado pela incompletude. Sempre faltará algum direito. Cabe aos grupos sociais se organizarem, lutarem e conquistarem esse direito. É assim que funciona o regime democrático: garantir o direito de crítica e o de organização, permitindo a luta dos grupos sociais para fazer avançar os direitos de cidadania e a própria prática democrática.

É nesse sentido que eu entendo que o período de 1946-1964 foi a primeira experiência de democracia representativa vivenciada pela sociedade brasileira.

A ditadura que se seguiu ao golpe civil-militar de 1964 não chegou a extinguir o sistema representativo — da mesma maneira como Vargas fez em 1937. Mas cerceou, limitou e restringiu ao máximo o processo político-eleitoral e a representação política. A ditadura foi uma tragédia em todas as dimensões da vida brasileira. Na questão política, extinguiu partidos representativos e enraizados na cultura política brasileira. O cerceamento dos direitos políticos e dos direitos civis deixou um rastro de autoritarismo e destruição das noções mais básicas de cidadania.

IHU On-Line – Que siglas compunham o cenário político brasileiro na experiência democrática iniciada em 1946 e como elas se definiam ideologicamente?

Jorge Luiz Ferreira – O país chegou a ter 13 partidos políticos, mas três deles se destacaram. Desde 1942, dentro do governo Vargas, discutia-se a fundação de um partido político que herdasse o prestígio do presidente. No início de 1945, os interventores dos estados fundaram o Partido Social Democrático – PSD. Eram homens com estreitas ligações com as elites políticas dos estados. Era o partido da máquina eleitoral e do voto das cidades do interior — onde viviam 70% da população brasileira. O PSD identificava-se com a imagem de Vargas, adotando posição política conservadora. Cabe, aqui, definir o que se entende por “conservador”. Os pedessistas eram conservadores, mas defensores do regime liberal-democrático. Em toda sua história, o PSD atuou dentro das regras democráticas. Como defendeu Lucia Hippolito , o PSD tirava sua força exatamente do processo político-eleitoral. Embora conservador, defendeu as leis sociais, apoiou iniciativas estatistas e de intervencionismo governamental na economia e nunca se envolveu com golpes. Nem mesmo em 1964. O PSD era o grande partido de centro e o fiador da democracia brasileira.

O Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, fundado no início de 1945, também resgatava o legado de Vargas e surgiu por iniciativa de sindicalistas e funcionários do Ministério do Trabalho. Era o partido que tinha o objetivo de organizar os trabalhadores urbanos que se identificavam com o trabalhismo de vertente getulista. Há uma versão, equivocada a meu ver, de que o PTB foi fundado às pressas para evitar que os trabalhadores aderissem ao Partido Comunista do Brasil (PCB). O PTB tinha seu próprio projeto político, o trabalhismo, e estava sendo planejado desde 1942.

O terceiro grande partido era a União Democrática Nacional – UDN. Diversamente dos outros dois, a sigla não tem a palavra “partido”, mas, sim, “União”. A UDN surgiu no início de 1945 como uma frente antigetulista. Quem era contra Vargas e o Estado Novo e a favor da candidatura presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes  entrava para a UDN. Inicialmente, tratava-se de uma espécie de frente, mas, após as eleições presidenciais de dezembro de 1945, começaram as defecções. A Esquerda Democrática saiu da UDN e fundou o Partido Socialista Brasileiro – PSB. Ademar de Barros  também saiu e fundou o Partido Social Progressista – PSP, bastante popular em São Paulo. Raul Pilla  fundou o Partido Libertador – PL, muito forte no Rio Grande do Sul. Arthur Bernardes  também saiu e fundou o Partido Republicano, com significativas bases em Minas Gerais.

Outro partido importante foi o PCB. Reorganizado em fins do Estado Novo, alcançou grande prestígio em 1945 devido à figura de Luis Carlos Prestes  e a admiração que os comunistas adquiriram com os imensos sacrifícios da população soviética e dos feitos heroicos do Exército Vermelho  para a derrota da Alemanha nazista. Mesmo na ilegalidade a partir de 1947, o PCB elegeu representantes por outras siglas, notadamente no PTB, e teve atuação semilegal durante os governos de Juscelino  e Jango .

Outros partidos menores merecem estudos, caso do PSP, partido que não era apenas “paulista”, como é comum interpretar. Como também o Partido Democrata Cristão que, a partir de 1955, defendeu teses progressistas, surgindo com o projeto da Terceira Via, sob liderança de Franco Montoro , Plínio de Arruda Sampaio  e outros.

Havia algo muito importante na vida política do país que é muito difícil de ser construído: a fidelização do eleitor com seu partido. Os partidos políticos apresentavam perfil ideológico identificado pelo eleitorado, notadamente o PTB, o PSD e a UDN.

Outra questão importante é o que as pesquisas desenvolvidas por cientistas políticos garantem: a estabilidade e a consolidação desse sistema partidário. Talvez a extinção desses partidos tenha sido um dos maiores males produzidos na vida política do país pela ditadura. Se isso não tivesse acontecido, muito possivelmente hoje estaríamos votando no PTB, no PSD e na UDN.

IHU On-Line – Como foi o surgimento dos sindicatos na década de 1930? Qual era a relação dessas organizações sindicais com o Estado à época?

Jorge Luiz Ferreira – Havia um movimento sindical atuante na Primeira República. Destacavam-se principalmente anarquistas, socialistas, comunistas, mutualistas e sindicalistas moderados dispostos a conquistar benefícios sociais aos operários por meio de negociações com o governo.

Os trabalhadores tornaram-se atores centrais para o governo que surgiu da Revolução de 1930. Não é casual que sua primeira medida tenha sido a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e tenha recebido a designação de “Ministério da Revolução”. Em março de 1931, o governo decretou a Lei de Sindicalização, de viés corporativista. A lei foi muito criticada pelas esquerdas da época. Mas há um dado na legislação que era a antiga reivindicação de setores significativos do movimento sindical: os sindicatos se tornavam legais. Estando dentro da lei, os sindicalistas tinham defesas diante das perseguições policiais e dos patrões. O Governo Provisório encontrou apoio de setores importantes do movimento sindical que integravam o que hoje chamamos de movimento mutualista e de sindicalistas moderados — antes chamados de “amarelos” pelos anarquistas e pela literatura dos anos 1970. Além da militância sindical que buscava diálogo com o Estado visando a benefícios sociais, os socialistas também apoiaram a iniciativa do Governo Provisório. Esta foi a base sindical que aderiu à Lei de Sindicalização. Mas se a legislação respondia a demandas dos próprios sindicalistas, impunha restrições e controle de outro: o sindicato legalizado não poderia fazer propaganda ideológica, política ou religiosa e seria fiscalizado pelo Ministério do Trabalho. A legislação impôs o modelo corporativista e a unicidade sindical com base territorial. Somente o sindicato reconhecido pelo Ministério do Trabalho poderia atuar legalmente em determinada base territorial. Ele teria a prerrogativa, concedida pelo Ministério, do monopólio da representação da categoria. Qualquer outro sindicato seria considerado ilegal.

Muito rapidamente, numerosos sindicatos se legalizaram, o que demonstra que havia uma base sindical disposta a negociar com o governo em busca de benefícios sociais aos trabalhadores. Se houve resistências, pesquisas demonstram que houve aceitação como também adesão, por grande parte do movimento sindical, da Lei de Sindicalização.

Há de se considerar, ainda, o verdadeiro impacto causado pelas leis sociais entre os trabalhadores. Entre 1931 e 1934, praticamente toda a legislação social foi promulgada e ainda criada o que seria mais tarde a Justiça do Trabalho, cujo objetivo era o de obrigar os empresários a cumprir as leis trabalhistas. Em quatro anos o governo atendeu reivindicações de mais de duas décadas. Os sindicatos comunistas, trotskistas e anarquistas ficaram em difícil situação.

A legislação sindical e social foi bastante debatida entre sindicalistas. Na luta por seus direitos, eles realizaram greves, passeatas, foram no parlamento, pressionaram partidos políticos, pelo menos entre 1931 e 1935. A adesão dos trabalhadores ao novo modelo de organização sindical não foi devido ao “populismo” ou à “falsa consciência”, mas porque eles reconheceram na legislação sindical e nas leis sociais respostas às suas demandas.

Tanto a Lei de Sindicalização como a legislação social não devem ser interpretadas como algo imposto de cima para baixo e contra os interesses dos trabalhadores. Se fosse assim, a Lei de Sindicalização não resistiria a três Assembleias Constituintes — 1934, 1946 e 1988; não teria sobrevivido, praticamente incólume, a duas ditaduras — a do Estado Novo e a ditadura militar — e a três regimes constitucionais — 1934-1937, 1946-1964 e o que se abriu em 1988. O modelo corporativo, a unicidade sindical e o monopólio da representação, pilares da Lei de Sindicalização, se foram formulados e implementados pelo Estado, foram aceitos pelo sindicalismo moderado dos anos 1930 e, a seguir, na experiência democrática de 1946-1964, defendidos por comunistas e trabalhistas. Nesse período, comunistas e trabalhistas, unidos na luta sindical, utilizaram a legislação a seu favor, tomando federações e confederações. Cresceram e se fortaleceram com o apoio da lei. A ditadura militar pouco modificou a Lei de Sindicalização. Limitou-se a aplicá-la com todo o rigor. A Lei de Sindicalização, portanto, é muito maleável. Serviu para o crescimento das esquerdas; serviu como instrumento repressivo da ditadura.

A Lei de Sindicalização recebeu duras críticas dos “novos sindicalistas” em fins dos anos 1970 e dos neoliberais dos anos 1990. Mas nem os neoliberais, muito menos os “novos sindicalistas”, ambos no poder, conseguiram alterá-la. Os “novos sindicalistas”, como também os “velhos”, fizeram lobby para que os constituintes, em 1988, preservassem na Constituição a unicidade sindical e o imposto sindical. A legislação de 1931 mostrou-se tão funcional que esquerdas e direitas não se atrevem a alterá-la — salvo pequenos dispositivos que não comprometem sua lógica.

IHU On-Line – Qual foi a atuação das Ligas Camponesas  e de outras organizações políticas para as lutas rurais no período anterior ao golpe de 1964?

Jorge Luiz Ferreira – Nos anos 1950, o Brasil rural era o do minifúndio, que mal alimentava a família que ali vivia, e de imensos latifúndios. A agricultura era atrasada, sem mecanização e implementos agrícolas. Era agricultura a enxada e a foice. O Nordeste brasileiro era a região que mais chamava a atenção. Além das graves injustiças sociais, havia o fenômeno climático da seca, gerando multidões de famintos. É nesse ambiente explosivo que surgem as Ligas Camponesas. A primeira foi fundada em 1955 no Engenho Galileia. Era entidade civil com registro em cartório. Nessa época, o Ministério do Trabalho criava todo tipo de empecilho para a criação de sindicatos rurais. Não estando submetidas à Lei de Sindicalização, a autonomia das Ligas era grande. As Ligas Camponesas lutaram contra a exploração dos latifundiários sobre os trabalhadores rurais, sobretudo a prática das expulsões da terra. É nessa luta que elas contrataram o advogado Francisco Julião . A partir daí, as Ligas conseguiram levar latifundiários aos tribunais — uma vitória que não deve ser subestimada.

Mas é preciso considerar outra organização rural importante, fundada em 1954 pelo Partido Comunista do Brasil – PCB, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil – ULTAB . As Ligas Camponesas e a ULTAB entraram em concorrência na luta pela organização dos trabalhadores rurais. O marco foi o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, ocorrido em 1961, em Belo Horizonte. Embora a ULTAB tivesse maior número de delegados, foram os representantes das Ligas que deram o tom do Congresso, radicalizando à esquerda com o lema “Reforma agrária na lei ou na marra”, ou, nas palavras de Francisco Julião, “a reforma agrária será feita com flores ou com sangue”. Setores das Ligas Camponesas, com apoio e financiamento do governo de Cuba, planejaram montar focos guerrilheiros no Piauí, Bahia, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Goiás, Paraná e Maranhão. O primeiro deles, em Dianópolis, Goiás, foi desbaratado em dezembro de 1962, frustrando os planos dos setores mais radicais das Ligas. Francisco Julião, por sua vez, desde sua visita a Cuba, também radicalizou à esquerda, fundando o Movimento Revolucionário Tiradentes – MRT .

Outra influência importante foi a da Igreja Católica. Desde os anos 1930 a Igreja atuava nos meios operários com os Círculos Operários Católicos . Nos anos 1960, estava muito presente no meio rural. Durante o governo Goulart, a Igreja Católica e o PCB investiram politicamente na formação de sindicatos rurais, aproveitando a legislação promulgada pelo governo Jango, que estendeu o direito de sindicalização aos trabalhadores do campo. As Ligas preferiram permanecer como entidades civis e se viram isoladas com o crescimento do número de sindicatos e federações. Com a Lei de Sindicalização, católicos e comunistas fundaram a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag. Sua direção passou a ser formada com comunistas e católicos de esquerda.

Nas vésperas do golpe de Estado de 1964, a mobilização camponesa no Nordeste estava sob a liderança dos comunistas e da Igreja, em particular de sua ala esquerda. As Ligas Camponesas estavam divididas e isoladas. Francisco Julião, por exemplo, tomou posições de extrema-esquerda, estando apartado do próprio conjunto das esquerdas. Referia-se a João Goulart como “lacaio do latifundiário”. Leonel Brizola  não acreditava nele. O Partido Comunista o tinha como adversário. Contudo, na memória daquela época, são as Ligas Camponesas que aparecem em posição de destaque.

IHU On-Line – Como o Movimento dos Agricultores Sem Terra – Master  se tornou um ator social importante pela luta à Reforma Agrária no período anterior ao golpe? 

Jorge Luiz Ferreira – Assim como as Ligas Camponesas, a ULTAB e a atuação da Igreja Católica no campo, o Master tem identidade e história próprias. Não foi um movimento isolado no Rio Grande do Sul, mas fez parte de um contexto maior em que os trabalhadores rurais do país se mobilizaram por suas demandas.

O movimento teve início no Rio Grande do Sul, no município de Encruzilhada do Sul, em julho de 1960, quando um fazendeiro tentou retomar suas terras, abandonada desde muitas décadas, provocando a luta de trabalhadores rurais pela sua posse. Nascia ali o Movimento dos Agricultores Sem Terra – Master. Eles receberam o apoio de parlamentares do PTB e do governador Leonel Brizola, que desapropriou as terras e as entregou aos camponeses. Depois o movimento se espalhou pelas cidades vizinhas, com a formação de várias associações. Estudos mostram que os integrantes do Master eram arrendatários, peões, parceiros e agregados cuja atividade era temporária. Havia poucos empregos no campo. Havia também posseiros e pequenos proprietários. Os primeiros queriam a legalização da terra em que viviam, enquanto os segundos queriam aumentar sua propriedade. Em janeiro de 1962, trabalhadores sem terra acamparam próximo da fazenda Sarandi, na região conhecida como Capão da Cascavel, exigindo a desapropriação das terras. Há controvérsias se esse acampamento foi iniciativa do Master. Brizola desapropriou a fazenda naquele mesmo mês. A partir daí o Master fortaleceu-se com mobilizações e a estratégia de formar acampamentos nas estradas. O Master cresceu com apoio do governador do estado, Leonel Brizola. Mas não foi obra dele. E muito menos o governador teve o controle do movimento. Após o golpe de 1964, o regime militar reprimiu duramente o Master.

IHU On-Line – Atualmente, quem ocupa o antigo lugar de luta do Master?

Jorge Luiz Ferreira – As tensões sociais no campo não diminuíram com o golpe militar, apesar da grande repressão aos movimentos organizados. Mas o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, ocorreu no contexto do desenvolvimento econômico promovido pelo regime militar. Primeiro, o deslocamento de grande contingente de pessoas do Nordeste para Amazônia, Maranhão, Mato Grosso, Pará e Goiás com os chamados programas de “colonização”. O fracasso desses projetos resultou em imenso número de trabalhadores sem terra. Segundo, trabalhadores rurais do Espírito Santo e Minas Gerais expulsos de suas terras, transformadas em pastagens, e os do Sul do país que também perderam suas propriedades com a introdução da soja e do trigo. Esses dois grupos foram para Mato Grosso, Acre e Rondônia.

Com a ditadura, houve grande concentração fundiária. Toda essa imensa população expulsa de suas terras e desenraizada pelos deslocamentos encontraram o apoio de setores da Igreja Católica que, nesse período, eram adeptos da Teologia da Libertação. A Comissão Pastoral da Terra  teve papel importante na organização e politização do movimento. As tensões no campo foram agravadas com os projetos de construção de hidrelétricas que exigiram grandes extensões de terras para a formação de represas. Nos anos 1980, populações que perderam estas terras se mobilizaram e protestaram. As primeiras ocupações de terras — uma das estratégias do MST — começaram em 1979. Em 1984, a organização foi fundada.

O MST é tributário das lutas anteriores a 1964. Mas ele resulta, sobretudo, do contexto econômico da ditadura, com o avanço da concentração fundiária, dos deslocamentos demográficos, das frustrações com os projetos de “colonização”, da perda de terras para represamento. Não é casual, assim, que o MST se defina como movimento de “trabalhadores sem terra”. Mais do que as Ligas — que se diziam “camponesas” — ou do Master — autodefinido como “agricultores”—, a identidade do MST é mais abrangente, a do “sem terra”, o que inclui trabalhadores urbanos que queiram viver no mundo rural.

IHU On-Line – Retomando a discussão sobre os partidos políticos, como se deu a participação das siglas no golpe civil-militar? Como ocorreu o processo de polarização política dos partidos durante o governo Goulart?

Jorge Luiz Ferreira – Quando ocorreu a crise da renúncia de Jânio Quadros  e os ministros militares vetaram a posse do vice-presidente João Goulart, o Congresso Nacional foi aquele que, inicialmente, resistiu ao golpe. Todos os partidos no Congresso Nacional não aceitaram a coação militar, inclusive a UDN. Foi criado um embate entre os ministros militares e o Congresso Nacional. O nó foi desatado por Leonel Brizola que, com sua ação destemida, tornou o embate favorável ao parlamento.

Desse modo, temos que superar ideias correntes de que havia partidos políticos golpistas desde o início do governo Goulart. Com a radicalização política crescente, sobretudo no segundo semestre de 1963, a situação se altera. A UDN passa a fazer oposição sistemática a Goulart, sobretudo alardeando o perigo de sua aproximação com as esquerdas e os comunistas. O PTB e as esquerdas também fazem oposição a Jango, mas por ele insistir na aliança com o grande partido de centro, o PSD. Ao mesmo tempo, o pessedistas demonstram receios com os ataques que trabalhistas e as esquerdas lhes faziam e, no parlamento, aproximam-se dos udenistas.

O PSD deu seu apoio a Goulart até quando pôde. Até quando suas bases entraram em estado de rebelião. Somente no dia 10 de março de 1964, três dias antes do comício da Central do Brasil, é que o PSD rompeu com Goulart. O partido foi para a oposição e não para a conspiração. A partir do comício de 13 de março, as elites políticas de direita e de esquerda deram o tom da política brasileira, inibindo a atuação do centro político — cuja extensão e importância na política brasileira não era pouca.

IHU On-Line – Passados quase 30 anos do fim da ditadura, como a herança dos militares permanece em nossas instituições político-partidárias?

Jorge Luiz Ferreira – Creio que tudo o que ocorreu durante a ditadura militar foi negativo para a sociedade brasileira. Houve o crescimento econômico na época do general Médici, mas o modelo econômico produziu grave concentração de renda, tornando o Brasil um dos países mais injustos do mundo. Na questão dos direitos políticos, houve uma regressão. Na questão dos direitos civis, a herança foi desastrosa. Direitos básicos do cidadão, como a livre expressão do pensamento e as garantias constitucionais, tornaram-se letra morta. Creio que nada de positivo foi herdado da ditadura. Inclusive para as próprias Forças Armadas, quando negam a prática da tortura e de assassinatos nas dependências de seus quartéis. Ao acobertar a prática da tortura e os torturadores, a instituição militar continuará arcando, no conjunto, com as consequências de atos de um grupo que se impôs no Exército com o AI-5 . Considero que houve algo positivo, mas que resultou da experiência negativa da ditadura. Hoje, a sociedade brasileira procura resolver seus problemas e conflitos por meios democráticos. Os grupos em disputa resolvem suas diferenças por meios políticos, e não mais chamando os militares para intervenções que os favoreçam — como ocorria antes de 1964, tanto entre as direitas como entre as esquerdas. Hoje, valoriza-se o regime democrático; as oposições lutam para chegar ao poder pelo voto democrático do povo. Não têm como estratégia alcançar o poder pela força das armas. A não ser minorias, de direita e esquerda, inexpressivas na sociedade brasileira. Creio que, se há alguma herança, é essa: a valorização da democracia após as vivências e experiências da ditadura e do autoritarismo.

IHU On-Line – Embora o termo “governabilidade” tenha surgido com o Lula, a qual conceito está relacionado?

Jorge Luiz Ferreira – Entre muitos setores da sociedade brasileira existe a imagem muito negativa do Poder Legislativo. São comuns afirmações de que o Congresso Nacional é lento em suas decisões, e os parlamentares, além de ganharem muito, somente pensam em seus interesses particulares. Esse argumento vem de longa data. Os ideólogos do Estado Novo o usaram para justificar a extinção do Poder Legislativo e a imposição da ditadura. Talvez seja por isso que a palavra “governabilidade” tenha sentido negativo. Faz referência às pressões dos parlamentares para que o Poder Executivo possa governar. É o “dando que se recebe”, o “toma lá, dá cá”.

Essas práticas políticas existem e devem ser denunciadas, repudiadas e eliminadas da política brasileira. Mas, a meu ver, “governabilidade” pode ter outro sentido. Trata-se de dinâmica inerente aos regimes de democracia representativa. O presidente — ou primeiro-ministro, no caso dos regimes parlamentaristas — necessita de maiorias parlamentares para que seus projetos sejam aprovados. Para isso, procura formar “coligações partidárias” que lhe permitem ter maioria no Congresso Nacional — recurso legítimo nos regimes de democracia representativa. Algo que requer negociações, pactos e compromissos políticos — a princípio, algo também legítimo.

Há, contudo, certa incompreensão política em relação ao mecanismo das coligações partidárias. Um bom exemplo foi a estratégia de João Goulart em todo o seu governo — pelo menos até o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Sua estratégia foi a de alcançar maioria no Congresso Nacional pela coligação do PSD com seu próprio partido, o PTB. O primeiro tinha o maior número de cadeiras no parlamento; o segundo, a terceira bancada. Juntos, tinham maioria. Com a coligação de centro-esquerda, Goulart visava ter maioria parlamentar, isolar a direita — em particular, a UDN, com a segunda bancada no parlamento — e ainda atrair o apoio de legendas menores, como o PSP, o PDC e o PSB. Com maioria de centro-esquerda no Congresso Nacional, Goulart tinha o objetivo de aprovar as reformas de base a partir de pactos, acordos e compromissos, seguindo os procedimentos constitucionais. Contudo, as esquerdas viam sua estratégia de maneira negativa. À prática da coligação partidária, comum nas democracias representativas, as esquerdas chamavam “política de conciliação”, algo a ser repudiado. Para as esquerdas, Goulart deveria romper com o PSD, visto como partido de direita, e governar somente com o PTB e partidos de esquerda, mesmo que perdesse a maioria no Congresso Nacional. Esse é um exemplo de como o instrumento legítimo da coligação partidária nas democracias representativas é interpretado, por vezes, de maneira negativa, e nomeado pejorativamente de “governabilidade”.

Por Ricardo Machado / Publicado originalmente “Memória revisitada – O golpe e seu contexto histórico-político”

Fonte: IHU

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