A ditadura interrompeu os planos de Aurélio do Carmo, assim como jogou por terra sonhos de muitos brasileiros. Foram dez anos sem direitos políticos (que só seriam retomados com a anistia) e de um auto-exílio no Rio de Janeiro. “Eu fui considerado um morto vivo. Minha mulher, Rute, recebia até pensão. Queriam impedir que eu exercesse a advocacia. Nós nos sentíamos como leprosos morais. Quando viajamos para o Rio de Janeiro, senti que algumas pessoas até me evitavam. Determinadas pessoas eram áulicos, apenas amigos do poder. Isso foi um aprendizado muito bom. Fortaleceu a crença de que a gente tem que valorizar os verdadeiros amigos e a família”, conta Aurélio do Carmo que na última terceira 31, completou 90 anos.
Na casa simples e aconchegante, rodeado de fotos que contam capítulos importantes da história política do Pará, o ex-governador do Pará recebeu a reportagem do Diário. Contou histórias, relembrou alguns dos anos mais conturbados da política brasileira e garantiu que assim, como a ditadura militar, o sofrimento é parte passado, mas as lembranças ainda estão vivas. “Eu estava cheio de sonhos com um mandato que me foi dado por 70% dos eleitores paraenses e tive bruscamente que deixar o cargo sem estar preparado psicologicamente. Se não tivesse preparação espiritual para superar isso tudo, sem rancor, sem ódio, não teria conseguido”, conta, atribuindo ao espiritismo a força para superar os momentos difíceis que viveu ao longo de 90 anos. “Hoje sei que tudo o que aconteceu, tinha que ser. Mudei a página”. A história política do Pará, contudo, não pode deixar de visitar o passado e tirar lições para o futuro.
Aurélio do Carmo conta que como a maioria dos brasileiros, também fora surpreendido pelo golpe militar. Ele estava no Rio de Janeiro onde fora chamado por Kubitschek para acertar os detalhes da campanha presidencial na Amazônia. Do Carmo seria o responsável pelo comando comitê na região. “Quando os tanques foram às ruas ainda fui a uma reunião representando o Juscelino em Realengo”, conta.
Mesmo com a certeza do golpe, Aurélio não tinha idéia do tamanho da escuridão em que mergulharia o País e de que forma os fatos mudariam sua vida e a história do Pará.
“Quando soube do golpe fui até o marechal Castelo Branco que havia conhecido em Belém para saber detalhes do que ocorria. Ele me disse que poderia voltar a meu Estado que nada haveria contra mim e eu vim”.
Dias depois, começou o movimento para a deposição do governador. Do Carmo era acusado de corrupção e subversão como ocorreu com muitas lideranças políticas da época. Entre seus crimes estava uma viagem que fizeram a então maior potência comunista, a União Soviética. O ex-governador conta que fora conhecer o funcionamento de uma siderúrgica, um sonho que já naquela época, o Pará alimentava. Outro sinal de insubordinação foi a recusa em ir depor perante os militares sobre seus atos no governo. “Achava que meus atos não poderiam ser analisados por uma autoridade militar. Só pelo tribunal de Justiça”.
Sabendo do processo para cassá-lo, o então governador passou a andar preparado. “Andava sempre com maleta de roupas para o caso de ir para a prisão”. Outra providência foi pedir a dona Rute que não pedisse, em hipótese alguma, que ele fosse solto. “Achei que seria humilhante” .
A surpresa com o processo foi maior porque Do Carmo nunca se considerou um homem de extremos. Era um conciliador e diz que não era um adepto das idéias comunistas – o monstro que assustava os militares e parte da classe média brasileira nos anos 60 – embora mantivesse em sua equipe nomes como Benedito Monteiro que também acabou tendo os direitos políticos cassados.
Indagado se não ficara frustrado pela falta de reação popular à sua cassação, diz que ainda houve ensaios entre a equipe, mas ele mesmo os desencorajou. “A população não estava satisfeita com o estado de coisa de forma que o movimento não seria bem recebido”.
Um dos algozes de ex-governador foi o então chefe do Estado Maior do exército no Pará, coronel Jarbas passarinho. Com amigos em comum, Aurélio conta que, após o golpe, Passarinho mandara recados afirmando que ele não seria cassado, mas o processo já estava em andamento. “A mágoa que tive dele por causa dessa atitude dúbia”. Ele afirma, contudo que até essa relação foi superada. Há dois anos, ao saber que coronel estava doente, fez questão de mandar-lhe um telegrama. Ao ligar para busca o endereço foi atendido pelo próprio Jarbas. “Ele disse que as circunstâncias dividiram nossas vidas, mas que estava feliz com meu telefonema”
Após perder o mandato de governador, Aurélio do Carmo foi viver no Rio de Janeiro. Passou dez anos, e só voltou após a anistia. No Pará, assumiu um cargo de desembargador que era destinado a advogados pelo chamado 5º Constitucional. Foi aposentado compulsoriamente por idade, mas ainda hoje vai pelo menos uma vez por semana ao fórum. Filiado ao PMDB também visita a sede do partido e acompanha de perto a política paraense. Um dos temas que o preocupou foi o plebiscito para divisão Pará. “Acho que é muito difícil administrar um Estado continental como o nosso”, diz defendo a criação de estruturas do governo estadual nas regiões mais distantes. “Podiam ser vice-governadorias como temos as vice-prefeituras em alguns lugares”, explica.
Hoje, quase quatro décadas após deixar o governo, diz que ainda sente o gostinho de ter sido um dos políticos mais populares do Estado. “Ando nas ruas e sinto o carinho das pessoas comigo”. Na véspera da entrevista ao Diário, por exemplo, se emocionou ao ser aplaudido durante uma missa quando o padre informou da sua presença.
“Às vezes, fico sentado aqui, refletindo. Viver 90 anos não é fácil. Passei por muitas coisas. Deus tem me experimentado e eu penso comigo mesmo, sem qualquer auto-elogio, acho que estou sendo aprovado” (Diário do Pará)
Fonte: Dol