Em entrevista ao UOL, o dominicano Frei Betto descreve os conflitos no interior da igreja durante a ditadura e explica como se operou a mudança de lado da CNBB, que inicialmente celebrou o golpe com agradecimentos a Nossa Senhora Aparecida, mas depois se constituiu como força de resistência ao regime. O religioso revela ainda que a CIA (agência de inteligência dos Estados Unidos) financiou as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, manifestações populares que antecederam o golpe militar.
A reportagem é de Guilherme Balza, publicada pelo portal Uol, 21-03-2013.
Frade dominicano e escritor, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 69, mineiro de Belo Horizonte, era um jovem estudante adepto da Teologia da Libertação quando as tropas derrubaram o presidente João Goulart, em 1964. Foi preso pela primeira vez dois meses após o golpe, permanecendo 15 dias detido. O segundo cárcere foi mais longo, entre 1969 e 73, e mais cruel: o frade foi submetido a sessões torturas nos porões do DOI-Codi, em São Paulo, comandado pelo Coronel Brilhante Ustra.
Nos dias posteriores ao golpe, o militante religioso foi testemunha da derrota dos progressistas no embate com conservadores dentro da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), fato que resultou no apoio da Igreja Católica aos militares ao menos até 1968, quando o regime aprofundou a repressão e a violação de direitos humanos.
Autor de três livros sobre os anos de chumbo (“Cartas da Prisão”, “Diário de Fernando” e “Batismo de Sangue”), Frei Betto relata que o Ato Institucional nº. 5 (AI-5) e o aumento da perseguição a religiosos, assim como a ascensão de bispos progressistas, provocaram uma virada na igreja, que passou a se opor aos militares até o final do regime, com a chancela do Vaticano.
Eis a entrevista.
O que o senhor estava fazendo em 31 de março de 1964?
Na verdade o golpe foi no dia 1º. Essa história de 31 é invenção dos milicos porque tinham vergonha do 1º de abril. O golpe foi oficialmente no dia 1º de abril, quando Jango sai do Brasil e se refugia no Uruguai. Eu estava participando do Congresso Latino-americano de Estudantes em Belém, no Pará.
Como o senhor recebeu a notícia?
A notícia veio de maneira difusa, confusa, de que havia movimento de tropas, que o Jango tinha passado por Brasília, depois ido a Porto Alegre e de lá saído ao Uruguai, porque estava deposto. O Congresso foi desfeito porque ali participavam estudantes de quase todos os países da América Latina, muitos deles acostumados a golpes militares. Eles sentiram que a coisa ia endurecer. Estava hospedado na casa do arcebispo de Belém dom Alberto Gaudêncio Ramos porque eu era dirigente da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da Ação Católica também. Fui pra casa de um militante da JEC chamado Lauro Cordeiro. E ali fiquei, de ouvido colado no rádio, tentando entender o que estava acontecendo, e fomos tomando consciência, a partir do dia 2 ou 3 [de abril], de que realmente havia um golpe militar, que começava uma repressão. Nós esperávamos uma reação das forças esquerda, do PCB (Partido Comunista Brasileiro), da Ação Popular, das Ligas Camponesas, reação que nunca veio. Praticamente os militares assaltaram o poder sem precisar dar nenhum tiro.
Essa reação não ocorreu por quê?
Não ocorreu porque era um blefe. Realmente a esquerda não estava suficientemente organizada. Primeiro, não acreditava que houvesse um golpe, porque havia um mito de que o Jango detinha pleno controle das Forças Armadas. E que os generais que eram ministros dele jamais haveriam de traí-lo. O esquema militar do Jango era um mito que se alimentava. Em segundo, porque a esquerda era muito proselitista, mas não fazia um trabalho de organização popular. Não havia um trabalho de base como houve depois da ditadura. Era uma esquerda muito mais discursiva, ideológica, mas que não tinha uma capacidade de mobilização popular como se imaginava que tinha ou se esperava que tivesse para reagir ao golpe.
Naquele momento o que lhe passava pela cabeça?
Meu pai já tinha vivido sob uma ditadura, de [Getúlio] Vargas, já tinha sido preso, nos anos 30, teve que deixar o Rio de Janeiro, onde exercia a advocacia, e voltar a Minas porque forças de Vargas cercearam qualquer possibilidade dele de arrumar emprego. Ele me descrevia a ditadura como uma coisa cruel, assassina, com censura, sem nenhuma liberdade de expressão. Comecei a esperar que a mesma coisa viesse a acontecer. E fui atingido na pele só no dia 6 de junho de 1964, quando eu voltei ao Rio de Janeiro, onde morava, e ali eu fui preso com a direção da JEC, da JUC (Juventude Universitária Católica) e da Ação Católica, pelo serviço secreto da Marinha na madrugada de 5 para 6 de julho.
Nessa primeira prisão, onde o senhor ficou?
Primeiro eu fui levado até o comando da Marinha, na praça Mauá (centro do Rio), onde nós fomos torturados, interrogados e transferidos para Ilha das Cobras (RJ), no quartel de fuzileiros navais. Ficamos uma semana presos e depois fomos levados de volta ao apartamento em que morávamos por conta da CNBB, mas especificamente por conta de d. Helder Câmara, que era o assistente da Ação Católica, e ficamos em prisão domiciliar mais uma semana. Depois fomos liberados sem que houvesse processo formal.
Nesse período chegou a haver tortura?
Houve tortura. Quando fomos levados para o comando naval, houve tortura. Não nos moldes de 1969, quando fui preso de novo, mas houve tortura, com sopapos, soco na cara, empurrão. Não houve pau-de-arara, choque elétrico, essas coisas.
O senhor poderia descrever qual era o clima político do país naquele momento?
Era um clima de absoluta perplexidade. Em meados de abril de 1964, numa reunião no Rio da qual participei como membro da direção nacional da Ação Católica, houve uma furiosa discussão entre bispos conservadores e progressistas, tendo ganhado o setor conservador. E a CNBB oficialmente apoiou o golpe por ter livrado o Brasil da ameaça comunista. O caldo de cultura do golpe já havia sido preparado pela CIA no Brasil através do padre Patrick Peyton, que era o pároco de Hollywood e veio ao Brasil. Hoje já se sabe com documentos que ele era pago pela CIA para fazer as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ele promovia grandes mobilizações nesse sentido. Portanto, quando veio o golpe, a igreja agradece a Nossa Senhora Aparecida ter livrado o Brasil da ameaça comunista. Ao mesmo tempo havia aquela ideia de que a ditadura não duraria muito tempo porque [depois do golpe] não houve propriamente uma manifestação popular de apoio explícito. Então se pensava que os militares não teriam respaldo da opinião pública. Nos enganamos. A ditadura não só foi se aprimorando na sua crueldade, no seu desrespeito aos direitos humanos, principalmente a partir de 68 com o AI-5, como também ela durou 21 anos, o que na época ninguém esperava que acontecesse.
Pelo o que o senhor diz, a igreja estava dividida naquele momento. Ou os setores que eram contrários ao golpe ainda eram minoritários?
Eles eram minoritários. Os bispos tinham uma formação tradicional. Os primeiros bispos progressistas estavam praticamente aparecendo no cenário brasileiro, como o d. Helder [Câmara], o d. Waldyr Calheiros, que era bispo de Volta Redonda (RJ), o d. José Vicente Távora, de Aracaju. Mas eram poucos. O d. Carlos Carmelo Mota, de São Paulo (presidente da CNBB à época), era um moderado, mais para progressista. Era muito amigo do Juscelino [Kubistchek]. Mas o d. [Vicente] Scherer, que era arcebispo de Porto Alegre, o d. Jaime Câmara, que era arcebispo do Rio, eles eram muito conservadores e tinham muita força. Havia também dois militantes de extrema direita no episcopado, que eram o d. Geraldo Proença Sigaud, de Diamantina (MG), e d. [Antônio de] Castro Mayer, de Campos do Goytacazes (RJ), que eram patronos da TFP (Tradição Família e Propriedade). Esses eram dois militantes ferozes do fundamentalismo conservador na igreja. E tiveram muita atividade, muito empenho, nessa aprovação do golpe por parte da CNBB.
Como o Vaticano e o papa Paulo VI se posicionavam?
O papa não se posicionou no início. Mais tarde, o Vaticano veio a censurar a ditadura. Porque com o tempo a repressão se estendeu também à igreja e daí criou-se não só uma divisão na igreja, mas a própria CNBB foi se afastando da ditadura. A partir dos anos 70 a CNBB foi praticamente a grande voz de defesa das vítimas da ditadura. Tanto que o mais importante documento sobre os mais de 20 anos de ditadura foi produzido pelo d. Paulo Evaristo Arns, que é o livro “Brasil Nunca Mais“, que ele fez também com o reverendo Jaime Wright. A igreja e a própria CNBB se tornaram, a partir do AI-5, uma voz contra a ditadura. A igreja mudou de posição à medida que padres, bispos e religiosos eram também perseguidos e vitimizados pela ditadura. O d. Adriano Hipólito, por exemplo, bispo de Nova Iguaçu (RJ), foi apreendido e torturado. O d. Marcelo Carvalheira, que era assessor de d. Helder, foi preso comigo no Rio Grande do Sul. Toda essa repressão que atingiu os bispos fez com que a igreja assumisse cada vez mais uma posição crítica à ditadura.
Na medida em que os bispos foram se posicionando, Paulo VI veio em apoio, tanto que na prisão dos dominicanos se manifestou explicitamente a nosso favor. Enviou-nos de presente um rosário feito de contas de oliveiras de Jerusalém e um cartão manuscrito “como um testemunho de afeição, Paulo VI”. Tivemos um apoio explícito nos quatro anos em que estivemos presos.
E os bispos conservadores, como ficaram após essa virada na CNBB?
Eles ficaram em minoria. Alguns foram morrendo, outros foram aposentados por razão de idade ou de doença, mas eles foram perdendo a hegemonia da CNBB, que passou para as mãos dos progressistas, que eram críticos contundentes da ditadura e, portanto, defensores dos direitos humanos. Você vê surgir uma igreja progressista, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), das pastorais populares, assumindo uma posição bastante consequente, contundente, contra a ditadura militar.
Mas também houve repressão contra as CEBs.
Sempre houve. Quanto mais a igreja se posicionava, mais havia repressão. Houve repressão sobre todos aqueles que se opunham à ditadura.
Antes dessa virada, havia trânsito entre os militares e lideranças da igreja?
Havia. Como o caso do d. Eugênio Sales, no Rio, cuja postura até hoje, no meu ponto de vista, não está devidamente esclarecida. Ele alega que ajudou perseguidos, mas eram perseguidos do Uruguai, da Argentina e mesmo assim eu pessoalmente não conheci nenhum dos perseguidos do Cone Sul que tenham sido ajudados por ele. Sei que no caso dos perseguidos brasileiros, com exceção de algumas pessoas notórias, como intelectuais e jornalistas, ele se omitiu inteiramente. Pelo menos foi assim nos casos dos dominicanos.
Havia delatores dentro da igreja?
Isso sempre aconteceu. Não foi uma coisa maciça, mas aconteceu. Eu mesmo fui interrogado no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo pelo delegado Alcides Cintra Bueno, que era conhecido como delegado oculto. Ele tinha delatores dentro da igreja. Tinha padres, freiras, frades, pessoas que achavam, sei lá, em sã consciência que estavam ajudando a livrar o Brasil do comunismo, a purificar a igreja. Havia sim delatores dentro da igreja, como há em qualquer instituição, dentro do jornalismo, no teatro, em sindicatos. Isso sempre houve.
Como avalia o impacto do golpe na igreja?
Eu acho que o impacto foi muito positivo. Porque levou a igreja a se conscientizar do que é uma ditadura e do papel dela em defesa das vítimas, dos direitos humanos, dos mais pobres. São males que vem para o bem. Ou seja, a ditadura acabou produzindo uma grande renovação da igreja no Brasil, renovação que depois se perde bastante com o pontificado do João Paulo II.
Esta renovação interrompida se recupera hoje?
Agora com o papa Francisco (risos) nós estamos virando a página. Ainda a maioria dos bispos e padres que temos é resultado dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Então não dá para ser otimista imediatamente, mas, a médio prazo, sim. Tenho impressão que a Igreja Católica vai passar por uma grande mudança, com a volta das CEBs e daquela igreja progressista, que, diga-se de passagem, enchia os templos da Igreja Católica, não havia essa evasão que há hoje. A evasão coincide com a repressão às CEBs, às pastorais populares. Tenho a impressão que vamos voltar a um novo alento aí na Igreja Católica com o papa Francisco.
Como a igreja vem se comportando nesse processo de rediscussão da ditadura, com as Comissões da Verdade?
Vem se comportando muito bem, inclusive dando todo apoio, assessoria, documentação. Aliás, toda a documentação mais importante que existe sobre a ditadura foi feita pelo trabalho da igreja, do d. Paulo Evaristo Arns e do reverendo Wright. Eles que fizeram essa documentação, que foi microfilmada, levada para Suíça, recentemente retornou e hoje está à disposição dos pesquisadores em São Paulo.
Outro lado
Procurada pela reportagem do UOL, a Embaixada dos EUA no Brasil informou não ter “como fornecer nenhuma análise histórica desse período”.
A reportagem do UOL entrou em contato por telefone com a assessoria de imprensa da CNBB na última terça-feira (18) para que comentasse as afirmações feitas por Frei Betto. Até o fechamento do texto, às 20h desta quarta-feira (19), a entidade não havia respondido as perguntas enviadas por email.
Fonte: Instituto Humanitários Unisinos