Ayn Rand, escritora e filósofa defensora do objetivismo, lançou uma frase que ainda ecoa no debate político contemporâneo: “O capitalismo não criou a pobreza, ele a herdou.” À primeira vista, trata-se de uma sentença que soa tanto como defesa do sistema capitalista quanto como acusação indireta às críticas socialistas. Mas o que realmente está em jogo?
Na perspectiva randiana, a humanidade nasce na carência. Antes da Revolução Industrial, diz ela, os homens viviam sob fome crônica, doenças, baixíssima expectativa de vida, numa existência de sobrevivência nua e crua. Logo, a miséria não é produto de nenhuma ordem econômica específica, mas a situação originária da vida humana. O capitalismo, ao liberar a criatividade individual, a iniciativa e a livre concorrência, teria sido a primeira estrutura social a produzir riqueza em larga escala e retirar populações da penúria.
Em outras palavras, Rand propõe que a pobreza seja o ponto de partida da história e o capitalismo, a redenção.
Entretanto, quando olhamos pelo prisma marxista, a frase de Rand se revela não apenas ingênua, mas ideológica. Marx e Engels demonstraram em O Capital e no Manifesto Comunista que o capitalismo não se limita a “herdar” a pobreza: ele a produz de forma estruturada. A “acumulação primitiva” — expropriação de camponeses, escravização colonial, pilhagem de territórios — foi condição para o nascimento do sistema.
Assim, se a pobreza já existia como condição material em sociedades pré-capitalistas, o capitalismo a converte em mecanismo funcional: a criação de um proletariado despossuído que só possui sua força de trabalho para vender. Nas palavras de Marx: “A acumulação de riqueza em um polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, de sofrimento e de escravidão no polo oposto.”
Rand defende que o capitalismo teria reduzido a miséria ao longo dos séculos. Em parte, há verdade empírica nisso: inovações tecnológicas, medicina, produtividade agrícola, redes de transporte e comunicação alteraram a vida material da humanidade. Mas, como lembra Rosa Luxemburgo, essa expansão nunca é universal: sempre ocorre às custas da periferia do sistema. A opulência do Norte global se ergue sobre o empobrecimento estrutural do Sul.
Gramsci acrescentaria que a pobreza não é apenas econômica, mas cultural e política: é hegemonicamente normalizada. O trabalhador precarizado naturaliza a própria condição como destino, enquanto o capital transforma a escassez em disciplina social.
Quando Rand diz que o capitalismo “herdou” a pobreza, o que está em jogo é uma estratégia ideológica de naturalização. A miséria aparece como um fato inescapável da vida, e não como resultado de processos históricos de exploração. É, no fundo, uma versão moderna daquilo que Voltaire já ironizava: a ideia de que vivemos “no melhor dos mundos possíveis”, e que se ainda há pobres, é porque não se pode pedir mais da história.
Mas como diria Paulo Freire, “a desumanização, embora um fato concreto na história, não é destino dado, mas resultado de uma ordem injusta que gera violência.” A pobreza não é apenas uma herança: é uma produção, uma reprodução e uma pedagogia da opressão.
O capitalismo não criou a pobreza como fato ontológico — ela existia antes. Mas o capitalismo criou algo novo: a pobreza como categoria estrutural e funcional de um sistema mundial. Reinventou a miséria para que ela se tornasse engrenagem, exército industrial de reserva, mercado para produtos baratos, justificativa para caridade e terreno fértil para acumulação.
Portanto, Ayn Rand tem razão apenas pela metade. O capitalismo herdou a pobreza, mas a transformou em patrimônio próprio, em moeda corrente, em combustível.
Ou, parafraseando Hegel: o capitalismo não apenas herdou a pobreza, ele a sublimou — não no sentido de superação, mas de incorporação dialética, fazendo dela motor do seu desenvolvimento.
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